sexta-feira, 25 de abril de 2014

Os Capitães da Rádio

In Gazeta do Cenjor, Abril de 2004.
Por Catarina Durão


Foi há 30 anos que o Grupo de Comandos nº 10 tomou o Rádio Clube Português,   de onde emitiu os primeiros comunicados do Movimento das Forças Armadas. Chamaram-lhe “Operação México”, e foi em parte graças a ela que Portugal recuperou a liberdade

Na madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974, dois jornalistas alertados das operações militares que iriam decorrer nessa noite, saíram para as ruas de Lisboa, com a curiosidade em riste, prontos a testemunhar eventuais acontecimentos. Para além da calma aparente que se registava na cidade, depararam, no topo do Parque Eduardo VII, com um Rover suspeito. Lá dentro, homens vestidos de preto despertavam a atenção do público nocturno do parque. Seriam homens da Pide?

A resposta é dada com ironia e alívio pela voz de José Jorge Letria, no auditório da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). «Não. Eram os oficiais do Grupo de Comandos nº 10 da Força Aérea, preparando-se para tomar o Rádio Clube Português, muito perto dali, na Rua Sampaio e Pina.»

Trinta anos depois, reúnem-se rostos conhecidos, cabelos grisalhos, sorrisos cúmplices numa reconstituição histórica: a da tomada do Rádio Clube Português (RCP) na madrugada de 25 de Abril de 1974. A anfitriã SPA brinda os convidados da sessão com músicas do tempo da revolução, imagens a preto e branco dos protagonistas do episódio, os sons já roufenhos dos comunicados do Movimento das Forças Armadas (MFA). Os cravos estão presentes, frescos e viçosos, simbolizando como sempre a comoção da liberdade. A mesa, constituída por dois homens da rádio, Matos Maia e Luís Filipe Costa, e por dois antigos capitães de Abril, Costa Neves e Santos Coelho, tem como missão recordar o passado, contar histórias, comentar opiniões.

As canções do golpe

Um dos meios de comunicação mais importantes naquela época era a rádio. E foi através dela que as senhas para a realização do golpe de estado foram ouvidas. Cinco minutos antes das dez da noite do dia 24, João Paulo Diniz, convencido pelo MFA, passava “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, nos Emissores Associados de Lisboa. Era o sinal que a revolução estava a andar. Pouco depois, oito oficiais da Força Aérea e do Exército, demoravam-se na pastelaria Pisca Pisca, em Campolide, Lisboa. Passava já da meia-noite, quando começaram a ser evacuados pelo empregado «Julgam o quê? Amanhã não é feriado, é dia de trabalho!...», recebe em troca um sorriso irónico e o comentário de um deles: «Vai ver que sim... que vai ser feriado!».

O Brigadeiro Costa Neves recorda a história dessa noite com brilho nos olhos. Foi também ele que esqueceu as chaves dentro do carro, onde estavam as fardas e as armas com que tomariam o RCP. A sorte estava do lado do golpe. Um polícia ajudou-os a abrir a porta do carro e ainda sublinhou o carácter honesto do seu proprietário.

Meia-noite e vinte. A Rádio Renascença emite a “Grândola, Vila Morena” de José Afonso. Era o sinal de que já não se podia voltar atrás. É aqui que entra mais uma historieta do grupo convidado. A canção que supostamente serviria de senha era o “Venham mais cinco” do mesmo cantor, mas por estar no index das músicas censuradas, optou-se antes pelo “Grândola”, que curiosamente não aparecia na lista negra. A polémica surge no auditório da SPA. De quem foi a ideia? Como se processou a troca? Como se corrigiram os comunicados que faziam referência à primeira canção? Versões não faltaram, como se 30 anos depois ainda houvesse muitos pormenores para esclarecer. A discussão acende-se, os risos generalizam-se, a polémica fica sem conclusão.

Operação México

Retoma-se o rumo da reconstituição. Critica-se o exagero da versão de “Capitães de Abril”, o filme de Maria de Medeiros. «Uma coisa que tinha ficado esclarecida é que não iríamos exercer qualquer tipo de violência dentro da Rádio.», afirma Costa Neves.

Passam das três da manhã, quando o grupo dá início à “Operação México”. O RCP é tomado pacificamente e por volta das 04h20 é transmitido aos microfones o primeiro comunicado do MFA: «As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas (...). Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal (...).»

Ao longo da madrugada, outros postos de comando foram sendo tomados. O Aeroporto de Lisboa, a RTP, a Emissora Nacional, o Quartel-General em São Sebastião da Pedreira. Forças da Cavalaria 7, Caçadores 5 e da Escola Prática de Cavalaria de Santarém estacionam no Terreiro do Paço. Tudo isto acontece enquanto o grupo 10 se mantém enclausurado no RCP. Luís Filipe Costa, uma das vozes que leria o comunicado das 7h20, confessa ter vivido momentos de grande stresse naqueles longos corredores da Rádio «Sentia-me oprimido, com uma sensação horrível de estar fechado, sem janelas, sem saber o que se estava a passar lá fora.» Conta depois o episódio engraçado de uma senhora de idade que saiu à rua em roupão, com uma cafeteira  e duas chávenas nas mãos. Veio perguntar aos soldados que montavam guardam se tinham frio e se não queriam um cafézinho. A situação foi quase cómica, recorda Luís Filipe Costa, mas a senhora passou a noite a servir cafés aos soldados. «Foi o primeiro acto de solidariedade do golpe de estado.», afirma.

Mea Culpa

A reconstituição transforma-se, à beira do fim, numa reflexão necessária. O Coronel Santos Coelho afirma que «Abril ainda não se cumpriu. Faltam muitas batalhas para travar.», e com amargura critica: «Os capitães de Abril são a má consciência dos políticos. Muitas injustiças se cometeram.» Refere-se à pouco criteriosa distribuição da Ordem da Liberdade, concedida no tempo da presidência de Ramalho Eanes. Costa Neves concorda com o seu antigo camarada, embora tenha sido reconhecido com a Ordem e Santos Coelho não. «A culpa do que aconteceu é dos militares que delegaram o poder nos seus superiores. Se tivéssemos tido a habilidade para construir uma base de protecção para os militares que fizeram o 25 de Abril, nada disto teria acontecido.», refere Costa Neves.

Já no fim da sessão, o vice-presidente da SPA, José Jorge Letria, remata: «Os Portugueses que atravessam uma terrível crise moral e de valores, deveriam recuperar um pouco da sua auto-estima através de exercícios de memória como estes.»

Eis o fim da reconstituição: o público aplaude de pé os militares que puseram cobro à Guerra, à ditadura, à repressão. Mas ainda assim, muitas cadeiras vazias predominam na sala.


«A censura morreu, porque nós a matámos»


Entrevista a José Jorge Letria, in Gazeta do Cenjor, Abril de 2004.
Por Catarina Durão

Foi testemunha, protagonista e cronista do golpe que derrubou o regime. Enquanto jornalista, assumiu, como muitos, a coragem de escrever a verdade e de fazer frente à Comissão de Censura

Faz, no dia 25 deste mês, 30 anos, que o jovem José Jorge Letria correu Lisboa de alto a baixo à procura da revolução, que tardava. Encontrou-a pelas ruas, no trepidar das colunas de blindados que tomavam a cidade, nos sujeitos de gabardinas pretas que rondavam o Rádio Clube Português (RCP), nos confrontos perto do Terreiro do Paço, nas negociações no Largo do Carmo, na população que festejava com cravos.

Mas foi na redacção do jornal República que Letria e os seus camaradas do jornalismo cumpriram o destino que lhes estava reservado. Dizer “não” à censura. E com essa atitude, fizeram história. Não fora a pertinácia e a coragem dos repórteres Eugénio Alves e José Jorge Letria, que, a par das operações militares que iam decorrer nessa madrugada, saíram à rua para testemunhar o golpe, e o República poucas histórias teria tido para contar aos portugueses, logo na sua primeira edição matutina.

O filme da revolução

É através de Álvaro Guerra, um colega jornalista do República, que José Jorge Letria tem conhecimento das operações militares. Nos primeiros dias de Abril, Guerra avisa-o que «as coisas estão em marcha e que alguma coisa vai acontecer». Mais tarde, pergunta-lhe se quer participar no golpe, porque precisam de jornalistas para ajudar a redigir comunicados e a escolher músicas para passar na rádio. Aceita de imediato. A data é mais ou menos certa: 24 ou 25 de Abril.

 Nessa noite (de 24), José Jorge Letria e Eugénio Alves, um camarada de redacção, vão ao cinema. Por volta da meia-noite, os dois jornalistas esperam no carro para ouvir na rádio o “Grândola”, a senha definitiva. Sabem que entre as duas e as três da manhã sairão tropas do Batalhão de Caçadores 5 para o RCP e para o Quartel-General (QG), e tropas da Escola Prática de Administração Militar para tomar a Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Passam esse período entre a meia-noite e as três da manhã, a circular por Lisboa para ver se há algum sinal que confirme o que sabiam. «Foi uma espera de grande sofrimento.», confessa José Jorge Letria, «Às três da manhã, nós já estávamos desesperados e convencidos de que tinha abortado.» É então que testemunham a abertura das portas do Caçadores 5, na Rua Marquês da Fronteira, e uma coluna enorme de militares corta para o RCP e para o QG. Na Avenida da Liberdade vêem os blindados do Salgueiro Maia a chegar a Lisboa. «Foi a imagem mais impressionante daquela noite. Aí, percebemos que Lisboa estava tomada.

«Arriscámos tudo.»

Depois de muitas voltas pela cidade, e chegados à redacção, começam a escrever cerca das 6h30. Ainda não tinham noção da extensão do golpe e do apoio popular. «Nessa altura era um total vazio de informação.», afirma. Mas, como se toma a decisão de escrever notícias que relatam factos contra o regime? «Arriscando tudo.», diz, «Não tínhamos ninguém para contactar. Na Pontinha, o Otelo estava inacessível. Os ministérios também. Por isso, começámos a contar o que tínhamos testemunhado.»

É então que por volta das dez horas, os censores começam a pedir as provas do jornal. Letria recorda Vítor Direito, seu chefe de redacção, que, em nome de todos, profere: «Acabou-se, a partir de agora há liberdade em Portugal, não há mais provas censuradas!» E assim foi. «Naquela manhã, saiu a primeira edição histórica não visada pela comissão de censura. A censura, a partir daí, morreu, porque nós a matámos», remata com um sorriso.


Letria conta ainda que nos dias seguintes, apesar de haver uma sensação de liberdade desmesurada, o fantasma da censura continuava a atormentar as redacções. «Foi um processo que levou tempo.», diz, «Interiorizámos a existência da censura e o seu papel repressivo e portanto, ainda tínhamos esse ritmo.» Mas a euforia da liberdade era imensa. «Perdemos um certo sentido da realidade. Era inevitável escrever sobre a apologia da liberdade, do acto de mudança, que era a condição essencial do discurso jornalístico.»