In Gazeta do Cenjor, Abril de 2004.
Por Catarina Durão
Foi há 30 anos que o Grupo de Comandos nº 10
tomou o Rádio Clube Português, de onde
emitiu os primeiros comunicados do Movimento das Forças Armadas. Chamaram-lhe
“Operação México”, e foi em parte graças a ela que Portugal recuperou a
liberdade
Na
madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974, dois jornalistas alertados das
operações militares que iriam decorrer nessa noite, saíram para as ruas de
Lisboa, com a curiosidade em riste, prontos a testemunhar eventuais
acontecimentos. Para além da calma aparente que se registava na cidade,
depararam, no topo do Parque Eduardo VII, com um Rover suspeito. Lá
dentro, homens vestidos de preto despertavam a atenção do público nocturno do
parque. Seriam homens da Pide?
A resposta é
dada com ironia e alívio pela voz de José Jorge Letria, no auditório da
Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). «Não. Eram os oficiais do Grupo de
Comandos nº 10 da Força Aérea, preparando-se para tomar o Rádio Clube
Português, muito perto dali, na Rua Sampaio e Pina.»
Trinta anos
depois, reúnem-se rostos conhecidos, cabelos grisalhos, sorrisos cúmplices numa
reconstituição histórica: a da tomada do Rádio Clube Português (RCP) na
madrugada de 25 de Abril de 1974. A anfitriã SPA brinda os convidados da sessão
com músicas do tempo da revolução, imagens a preto e branco dos protagonistas
do episódio, os sons já roufenhos dos comunicados do Movimento das Forças
Armadas (MFA). Os cravos estão presentes, frescos e viçosos, simbolizando como
sempre a comoção da liberdade. A mesa, constituída por dois homens da rádio,
Matos Maia e Luís Filipe Costa, e por dois antigos capitães de Abril, Costa
Neves e Santos Coelho, tem como missão recordar o passado, contar histórias,
comentar opiniões.
As
canções do golpe
Um dos meios
de comunicação mais importantes naquela época era a rádio. E foi através dela
que as senhas para a realização do golpe de estado foram ouvidas. Cinco minutos
antes das dez da noite do dia 24, João Paulo Diniz, convencido pelo MFA,
passava “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, nos Emissores Associados de
Lisboa. Era o sinal que a revolução estava a andar. Pouco depois, oito oficiais
da Força Aérea e do Exército, demoravam-se na pastelaria Pisca Pisca, em
Campolide, Lisboa. Passava já da meia-noite, quando começaram a ser evacuados
pelo empregado «Julgam o quê? Amanhã não é feriado, é dia de trabalho!...»,
recebe em troca um sorriso irónico e o comentário de um deles: «Vai ver que
sim... que vai ser feriado!».
O Brigadeiro
Costa Neves recorda a história dessa noite com brilho nos olhos. Foi também ele
que esqueceu as chaves dentro do carro, onde estavam as fardas e as armas com
que tomariam o RCP. A sorte estava do lado do golpe. Um polícia ajudou-os a
abrir a porta do carro e ainda sublinhou o carácter honesto do seu
proprietário.
Meia-noite e
vinte. A Rádio Renascença emite a “Grândola, Vila Morena” de José Afonso. Era o
sinal de que já não se podia voltar atrás. É aqui que entra mais uma historieta
do grupo convidado. A canção que supostamente serviria de senha era o “Venham
mais cinco” do mesmo cantor, mas por estar no index das músicas censuradas,
optou-se antes pelo “Grândola”, que curiosamente não aparecia na lista negra. A
polémica surge no auditório da SPA. De quem foi a ideia? Como se processou a
troca? Como se corrigiram os comunicados que faziam referência à primeira
canção? Versões não faltaram, como se 30 anos depois ainda houvesse muitos
pormenores para esclarecer. A discussão acende-se, os risos generalizam-se, a
polémica fica sem conclusão.
Operação
México
Retoma-se o
rumo da reconstituição. Critica-se o exagero da versão de “Capitães de Abril”,
o filme de Maria de Medeiros. «Uma coisa que tinha ficado esclarecida é que não
iríamos exercer qualquer tipo de violência dentro da Rádio.», afirma Costa
Neves.
Passam das
três da manhã, quando o grupo dá início à “Operação México”. O RCP é tomado
pacificamente e por volta das 04h20 é transmitido aos microfones o primeiro
comunicado do MFA: «As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os
habitantes de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas (...). Esperamos
sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente
assinalada por qualquer acidente pessoal (...).»
Ao longo da
madrugada, outros postos de comando foram sendo tomados. O Aeroporto de Lisboa,
a RTP, a Emissora Nacional, o Quartel-General em São Sebastião da Pedreira.
Forças da Cavalaria 7, Caçadores 5 e da Escola Prática de Cavalaria de Santarém
estacionam no Terreiro do Paço. Tudo isto acontece enquanto o grupo 10 se
mantém enclausurado no RCP. Luís Filipe Costa, uma das vozes que leria o
comunicado das 7h20, confessa ter vivido momentos de grande stresse naqueles
longos corredores da Rádio «Sentia-me oprimido, com uma sensação horrível de
estar fechado, sem janelas, sem saber o que se estava a passar lá fora.» Conta
depois o episódio engraçado de uma senhora de idade que saiu à rua em roupão,
com uma cafeteira e duas chávenas nas
mãos. Veio perguntar aos soldados que montavam guardam se tinham frio e se não
queriam um cafézinho. A situação foi quase cómica, recorda Luís Filipe Costa,
mas a senhora passou a noite a servir cafés aos soldados. «Foi o primeiro acto
de solidariedade do golpe de estado.», afirma.
Mea
Culpa
A
reconstituição transforma-se, à beira do fim, numa reflexão necessária. O Coronel
Santos Coelho afirma que «Abril ainda não se cumpriu. Faltam muitas batalhas
para travar.», e com amargura critica: «Os capitães de Abril são a má
consciência dos políticos. Muitas injustiças se cometeram.» Refere-se à pouco
criteriosa distribuição da Ordem da Liberdade, concedida no tempo da
presidência de Ramalho Eanes. Costa Neves concorda com o seu antigo camarada,
embora tenha sido reconhecido com a Ordem e Santos Coelho não. «A culpa do que
aconteceu é dos militares que delegaram o poder nos seus superiores. Se
tivéssemos tido a habilidade para construir uma base de protecção para os
militares que fizeram o 25 de Abril, nada disto teria acontecido.», refere
Costa Neves.
Já no fim da
sessão, o vice-presidente da SPA, José Jorge Letria, remata: «Os Portugueses
que atravessam uma terrível crise moral e de valores, deveriam recuperar um
pouco da sua auto-estima através de exercícios de memória como estes.»
Eis o fim da
reconstituição: o público aplaude de pé os militares que puseram cobro à
Guerra, à ditadura, à repressão. Mas ainda assim, muitas cadeiras vazias
predominam na sala.