sexta-feira, 25 de abril de 2014

«A censura morreu, porque nós a matámos»


Entrevista a José Jorge Letria, in Gazeta do Cenjor, Abril de 2004.
Por Catarina Durão

Foi testemunha, protagonista e cronista do golpe que derrubou o regime. Enquanto jornalista, assumiu, como muitos, a coragem de escrever a verdade e de fazer frente à Comissão de Censura

Faz, no dia 25 deste mês, 30 anos, que o jovem José Jorge Letria correu Lisboa de alto a baixo à procura da revolução, que tardava. Encontrou-a pelas ruas, no trepidar das colunas de blindados que tomavam a cidade, nos sujeitos de gabardinas pretas que rondavam o Rádio Clube Português (RCP), nos confrontos perto do Terreiro do Paço, nas negociações no Largo do Carmo, na população que festejava com cravos.

Mas foi na redacção do jornal República que Letria e os seus camaradas do jornalismo cumpriram o destino que lhes estava reservado. Dizer “não” à censura. E com essa atitude, fizeram história. Não fora a pertinácia e a coragem dos repórteres Eugénio Alves e José Jorge Letria, que, a par das operações militares que iam decorrer nessa madrugada, saíram à rua para testemunhar o golpe, e o República poucas histórias teria tido para contar aos portugueses, logo na sua primeira edição matutina.

O filme da revolução

É através de Álvaro Guerra, um colega jornalista do República, que José Jorge Letria tem conhecimento das operações militares. Nos primeiros dias de Abril, Guerra avisa-o que «as coisas estão em marcha e que alguma coisa vai acontecer». Mais tarde, pergunta-lhe se quer participar no golpe, porque precisam de jornalistas para ajudar a redigir comunicados e a escolher músicas para passar na rádio. Aceita de imediato. A data é mais ou menos certa: 24 ou 25 de Abril.

 Nessa noite (de 24), José Jorge Letria e Eugénio Alves, um camarada de redacção, vão ao cinema. Por volta da meia-noite, os dois jornalistas esperam no carro para ouvir na rádio o “Grândola”, a senha definitiva. Sabem que entre as duas e as três da manhã sairão tropas do Batalhão de Caçadores 5 para o RCP e para o Quartel-General (QG), e tropas da Escola Prática de Administração Militar para tomar a Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Passam esse período entre a meia-noite e as três da manhã, a circular por Lisboa para ver se há algum sinal que confirme o que sabiam. «Foi uma espera de grande sofrimento.», confessa José Jorge Letria, «Às três da manhã, nós já estávamos desesperados e convencidos de que tinha abortado.» É então que testemunham a abertura das portas do Caçadores 5, na Rua Marquês da Fronteira, e uma coluna enorme de militares corta para o RCP e para o QG. Na Avenida da Liberdade vêem os blindados do Salgueiro Maia a chegar a Lisboa. «Foi a imagem mais impressionante daquela noite. Aí, percebemos que Lisboa estava tomada.

«Arriscámos tudo.»

Depois de muitas voltas pela cidade, e chegados à redacção, começam a escrever cerca das 6h30. Ainda não tinham noção da extensão do golpe e do apoio popular. «Nessa altura era um total vazio de informação.», afirma. Mas, como se toma a decisão de escrever notícias que relatam factos contra o regime? «Arriscando tudo.», diz, «Não tínhamos ninguém para contactar. Na Pontinha, o Otelo estava inacessível. Os ministérios também. Por isso, começámos a contar o que tínhamos testemunhado.»

É então que por volta das dez horas, os censores começam a pedir as provas do jornal. Letria recorda Vítor Direito, seu chefe de redacção, que, em nome de todos, profere: «Acabou-se, a partir de agora há liberdade em Portugal, não há mais provas censuradas!» E assim foi. «Naquela manhã, saiu a primeira edição histórica não visada pela comissão de censura. A censura, a partir daí, morreu, porque nós a matámos», remata com um sorriso.


Letria conta ainda que nos dias seguintes, apesar de haver uma sensação de liberdade desmesurada, o fantasma da censura continuava a atormentar as redacções. «Foi um processo que levou tempo.», diz, «Interiorizámos a existência da censura e o seu papel repressivo e portanto, ainda tínhamos esse ritmo.» Mas a euforia da liberdade era imensa. «Perdemos um certo sentido da realidade. Era inevitável escrever sobre a apologia da liberdade, do acto de mudança, que era a condição essencial do discurso jornalístico.»