Tinha
11 anos no dia 25 de Agosto de 1988. Vivia no sótão do número 59 da Rua Nova do
Almada e a minha família era a única a viver no lado dos números ímpares da
rua. Com 11 anos, mal temos consciência do quão cruel pode a vida tornar-se, numa
questão de minutos. De como não estamos à espera de sermos arrancados da cama
às 4h30 da manhã sob a ameaça de um vulcão cuspidor de fogo. Essa foi a minha
visão inicial do que aconteceu naquela madrugada de dia 25. Tomada pelos
violentos pesadelos que estava a ter nessa noite por causa de um filme - que
não devia ter visto umas horas antes -, os gritos da minha mãe pareciam uma
extensão do mundo dos sonhos. O que eu via através da janela trapeira do nosso
sótão era uma chuva de fogo que caía sobre as telhas da minha casa. Um cenário
sobrenatural em pleno Chiado, em plena Baixa de Lisboa. O vermelho contrastava
com o negro da noite. O som tenebroso das explosões enchia os nossos ouvidos e
por momentos, paralisados pelo medo, não conseguimos descortinar o que estava a
acontecer.
No andar de baixo, da varanda que dava para a rua, vimos então a
explicação. Nos prédios da Rua do Carmo, visíveis da nossa varanda devido à
curva que a rua faz, víamos o reflexo das chamas que consumiam já o edifício
dos Armazéns do Chiado. Ou assim pensávamos nós. Na verdade, o incêndio já
tinha atravessado para o outro lado da Rua do Carmo. Eram as explosões que
depositavam labaredas nos telhados dos prédios vizinhos. O que se passou de
seguida foi um turbilhão de acções e decisões. Os meus pais perceberam que,
enquanto os bombeiros estavam a combater o incêndio na Rua do Carmo, era
preciso ficar e apagar o fogo que caía no telhado. Tapetes e carpetes foram
encharcados em água e estendidos nas telhas. Durante horas, pai e mãe ali permaneceram,
apagando pequenos focos de incêndio, gritando aos vizinhos que fizessem o
mesmo. Eu e a minha irmã, de 15 anos, tínhamos outra missão: abandonar a nossa
casa e transportar connosco tudo o que fosse considerado imprescindível, neste
caso, documentação, dinheiro e algum ouro. Tudo o resto ficou para trás,
incluindo os nossos pais e a nossa cadela.
Pelas cinco horas da manhã cruzámos a Baixa, na direcção do Castelo. A
escuridão, o cheiro intenso, o vermelho que irrompia dos Armazéns do Grandella
ficaram gravados na minha memória como um ferro em brasa. A minha aldeia
desmantelava-se aos bocados. O recheio dos edifícios era agora uma amálgama de
lixo a arder. Os bombeiros, super-heróis que jamais esquecerei, lutavam com as
forças que tinham, enfrentando obstáculos, o vento, o calor insuportável.
Os
meus pais foram expulsos de casa pela polícia, durante a manhã, mas só por
volta do início da tarde o incêndio foi dado como controlado. O vento mudara de
direcção. A minha casa ficou incólume, a apenas umas dezenas de metros do fogo.
Os nossos corações, não.
Há
coisas que as efemérides não recordam. O incêndio tornou-se um marco histórico
documentado pelas imagens e pelas reportagens dos jornalistas. Há 25 anos que
se fala do fogo que destruiu 18 edifícios e que colocou no desemprego um sem
número de pessoas. Fala-se da sua reconstrução, do plano de Siza Vieira, da
péssima ideia das floreiras da Rua do Carmo - que impediram os bombeiros de
combater o fogo com maior eficácia. Recordam-se as imagens pontuadas pelo
cinzento e o amarelo/laranja de um conjunto de edifícios a arder ou a
transpirar de fumo, com o rescaldo.
Há
coisas que as efemérides não recordam porque a comunicação social não é uma
criança de 11 anos. Não recordam, nem conseguem recordar, que essa criança
cresceu numa aldeia queimada durante os cinco ou seis anos seguintes. Que os
prédios foram entaipados e se construiu um túnel - o túnel dos horrores - que
ligava a Rua Nova do Almada, a Rua do Carmo e a Rua Garrett. Que não era
permitido caminhar junto aos escombros, embora os víssemos claramente. Não
recordam as implosões de dois prédios: um ruído surdo e uma onda gigantesca de
pó. E depois, como se fossem dentes arrancados, os buracos do "Eduardo
Martins" e da "José Alexandre". Não conseguirão recordar nunca o
cheiro, que permaneceu sempre, entranhado no nariz - e um cheiro de incêndio
urbano é muito diferente de lenha a arder -, as memórias visuais dos restos
mortais das lojas do Chiado, dos ferros contorcidos, das janelas que permitiam
ver o tecto azul do céu. Um cenário de guerra.
Apesar
de as recordações serem dolorosas, lembro os tempos antes, durante e depois do
fogo com a mesma ternura. Já não vejo no Natal as montras dos armazéns do
Chiado decoradas com os brinquedos mecânicos que faziam as minhas delícias. Já
não assisto aos escorreganços das senhoras chiques que iam fazer compras no
Chiado, ali mesmo na esquina da minha rua. Quase tudo mudou no Chiado. Mas
sempre que lá passo, continua a ser a minha aldeia.
25.08.2013