De
origem francesa, mas sediada há vários verões na Bélgica, a Academia
Internacional de Teatro para Crianças tem agora a sua primeira experiência em
Portugal. E Angola juntou-se à festa.
Nélson
Gonçalves, um angolano de 22 anos vestido de branco, dá indicações em voz alta
às 36 crianças francesas, belgas, portuguesas e angolanas que rodopiam no
ginásio. Parece um professor de dança, muito direito, muito elegante. Mas é de
teatro que se trata. E o teatro, que se faz com o coração e com o corpo,
precisa de música, de dança, de desinibição. Os exercícios de Nélson servem
precisamente para isso.
Mais
do que memorização de textos, uma academia de teatro para crianças como esta
precisa de trabalho duro. De suor e algumas lágrimas. Ainda que seja por apenas
três semanas, durante o Verão.
Os
exercícios são feitos a pares. Nélson ensina as crianças a dançar "com um
morto". Deixa-se cair nos braços do seu par, arrastando-se consoante os
passos do companheiro. Os 36 pares de olhos fitam a cena. Riem, não acreditam
que vão conseguir fazer o mesmo, mas tentam. O ginásio do Seminário Maior de
São Paulo, em Almada, enche-se de pares que dançam desengonçadamente. Uns caem,
outros riem, perdem a concentração. É um exercício que desenvolve a expressão
corporal, mas também a confiança no outro.
Todos
os exercícios são transmitidos em português e em francês. "Silêncio!
Silence!" As crianças põem fim à tarefa transformada em brincadeira e logo
Nélson inicia a explicação para o próximo exercício. Em silêncio, de olhos
fechados, as palmas das mãos de cada um dos pares tocam-se e dançam. Num
instante, a sala fica suspensa num silêncio comovedor, embora a melodia da
música de fundo embale a dança das mãos. Momentos depois, os mais agitados já
abrem os olhos, flectem os joelhos. Sorriem.
"Já
começam a acusar cansaço depois de duas semanas", segreda-nos Ana Sofia
Santos, a formadora portuguesa que se juntou este ano à equipa da Academia
Internacional de Teatro para Crianças, pela primeira vez a trabalhar em
Portugal. Fundada em Paris em 1986, a equipa encabeçada por Elisabeth Toulet,
Christine Saillet e Francisco Marques, um português radicado em França, tem
desenvolvido projectos de educação artística e teatral junto das comunidades
infantis em países como o Canadá, a Bélgica, a Itália, o Líbano, o Senegal, a
Argélia e o Chile.
Há
vários anos a funcionar na Bélgica durante o Verão, a academia teve agora
condições para juntar em Almada, durante três semanas, 36 crianças e jovens
entre os 8 e os 14 anos. Convivem, aprendem e trabalham arduamente. Parte do
que fazem durante o dia de trabalho, que começa às 10h00 e termina às 18h30,
tem um objectivo definido: ensaiar uma peça que será levada à cena nos próximos
dias 23 e 24, no Teatro da Comuna, em Lisboa. Pássaro
Azul é o nome.
Os
exercícios são para ajudar a crescer, numa atmosfera onde a criatividade e a
relação com o outro são como o oxigénio.
A
meio da manhã afinam-se as gargantas. As letras das canções estão escritas em
cartazes afixados nos espaldares do ginásio. Todos cantam em francês, português
e inglês.
As
canções são o ponto mais alto das manhãs. Elas farão parte do repertório doPássaro
Azul, bem como algumas coreografias que são treinadas nos exercícios de
expressão corporal. Os textos só serão entregues daí a uns dias. O mais
importante agora é treinar o corpo e a voz.
O
canto e o movimento fazem parte deste espectáculo, adaptado de um texto
original de Maurice Maeterlink. É quase um musical, mas muito mais do que isso.
O encenador, Júlio Martín da Fonseca, explica-nos: "O Pássaro Azulsimboliza a procura
da felicidade, não a felicidade simples de alguém que come um gelado num dia de
Verão, mas a felicidade que nos dá uma razão de viver."
É
este o espírito de toda a academia. Sente-se em cada pormenor da organização e
até no espaço de acolhimento, que respira paz do alto da escarpa almadense. Do
outro lado, Lisboa estende-se numa paisagem de tirar o fôlego. É a cidade, de
uma ponte à outra, que por momentos as crianças contemplam em silêncio ao fim
do dia.
Os
telemóveis, os computadores, as televisões, os Mp3 não têm espaço durante as
três semanas. Os adultos que compõem a equipa asseguram-se da comunicação com
os pais. Escrevem-se cartas em vez de se enviarem emails. Brinca-se, joga-se,
dança-se, ri-se, lê-se, canta-se, em vez de se passarem horas à frente de um
computador.
É
a segunda vez que o belga Hugo d"Ursel, de 12 anos, participa na academia.
No ano passado, na terra natal, a experiência foi diferente: "Foi giro,
mas foi mais clássico. Aqui fazemos muitos ateliers."
Cantar é o que mais gosta de fazer o franco-senegalês Francisco Pereira, de
nove anos - embora confesse, um pouco envergonhado, que não gosta "de
cantar sozinho". Fica admirado, duas semanas depois, por saber que Hugo é
belga, uma vez que ambos falam francês.
Sem
telemóveis e Internet, a portuguesa Beatriz Ramos, de 14 anos, vacila quando
lhe perguntamos se sente falta das tecnologias. "Só me lembro que essas
coisas existem quando me falam disso." A francesa Johanna, 12 anos, pela
terceira vez a participar, ri-se, admite que lhes sente um pouco a falta.
Ainda
não sabem se querem ser actores, mas não é para isso que ali estão. "O
teatro ajuda-nos a ganhar confiança em nós mesmos. Podemos dizer as coisas
livremente." É a pequena Julia Munoz, de 12 anos, franco-portuguesa, quem
o diz.
"É
graças ao empenho do senhor Orlando que estamos aqui. Ele já emagreceu muito
para nos trazer a Portugal." O monitor angolano Nélson Cabanga, 20 anos,
parece tímido mas diz as coisas de forma certeira. "Tenham respeito pela
minha barriga", brinca Orlando Domingos, o "pai" da missão de
trazer um grupo de cinco crianças angolanas e três monitores a Portugal.
Fazem
parte da associação juvenil Globo Dikulu, do município do Cazenga, na periferia
de Luanda. "Nós apoiamos as crianças desta região para poderem participar
em actividades nos seus tempos livres, para que se desviem das más
práticas", explica Orlando. A parceria com a Academia Internacional de
Teatro para Crianças surgiu quando Francisco Marques e Christine Saillet
visitaram o seu centro de educação artística e organizaram um estágio de
formação em que várias crianças foram convidadas a participar. As que se
destacaram ganharam lugar na academia, em Portugal.
"Escolhemos
12 crianças, mas só puderam vir cinco. Alguns pais fizeram um esforço
suplementar para poderem pagar as passagens dos filhos. Pediram empréstimos e
adiantamentos de salário. A organização da academia também fez outro
esforço", explica Orlando.
Os
cinco seleccionados são, aos olhos de todos, os mais esforçados e os que têm
mais "sede de aprender", diz Elisabeth Toulet, fundadora da academia.
Cássia Armando, 14 anos, João Domingos, de 15, Wagner Mateus, de 14, Edna
Menezes, de 13, e Madalena Gola, de 14 fazem teatro há um, dois, três anos no
centro de educação artística no Cazenga. Todos falam do seu amor pelo teatro.
"Foi algo que começou do nada e que se tornou quase tudo", diz Cássia.
Edna reforça: "Para mim o teatro é como uma mãe ou como um pai. Não há
nenhuma arte melhor." Madalena acredita que o teatro "é uma bela
arte, porque não ensina só a representar, também educa".
João
gosta muito de comédia e até se vê um dia a fazer filmes comos os do Mr. Bean.
Já Madalena gosta mais do drama. Edna encolhe os ombros: "Tanto faz, gosto
de tudo." Na academia dançam, cantam e encarnam personagens. "Gosto
do modo de ensino dos professores. Da união entre as crianças aqui. Não estava
à espera de encontrar este ambiente", confessa Wagner.
Na
próxima sexta-feira é o grande dia da apresentação ao público na Comuna.
Cássia, que usa as asas azuis na peça, está ansiosa. O encenador revela-nos:
"O Pássaro Azul é uma viagem que estas crianças vão
fazer, uma procura. E o que vamos descobrir é que o Pássaro Azul não é exterior a nós. Ele está dentro
de nós."
18.08.2013