sábado, 16 de novembro de 2013

Uma academia internacional de teatro que ensina as crianças a amar a vida

http://www.publico.pt/desporto/jornal/uma-academia-internacional-de-teatro-que-ensina-as-criancas-a-amar-a-vida-26971659


De origem francesa, mas sediada há vários verões na Bélgica, a Academia Internacional de Teatro para Crianças tem agora a sua primeira experiência em Portugal. E Angola juntou-se à festa.
Nélson Gonçalves, um angolano de 22 anos vestido de branco, dá indicações em voz alta às 36 crianças francesas, belgas, portuguesas e angolanas que rodopiam no ginásio. Parece um professor de dança, muito direito, muito elegante. Mas é de teatro que se trata. E o teatro, que se faz com o coração e com o corpo, precisa de música, de dança, de desinibição. Os exercícios de Nélson servem precisamente para isso.
Mais do que memorização de textos, uma academia de teatro para crianças como esta precisa de trabalho duro. De suor e algumas lágrimas. Ainda que seja por apenas três semanas, durante o Verão.
Os exercícios são feitos a pares. Nélson ensina as crianças a dançar "com um morto". Deixa-se cair nos braços do seu par, arrastando-se consoante os passos do companheiro. Os 36 pares de olhos fitam a cena. Riem, não acreditam que vão conseguir fazer o mesmo, mas tentam. O ginásio do Seminário Maior de São Paulo, em Almada, enche-se de pares que dançam desengonçadamente. Uns caem, outros riem, perdem a concentração. É um exercício que desenvolve a expressão corporal, mas também a confiança no outro.
Todos os exercícios são transmitidos em português e em francês. "Silêncio! Silence!" As crianças põem fim à tarefa transformada em brincadeira e logo Nélson inicia a explicação para o próximo exercício. Em silêncio, de olhos fechados, as palmas das mãos de cada um dos pares tocam-se e dançam. Num instante, a sala fica suspensa num silêncio comovedor, embora a melodia da música de fundo embale a dança das mãos. Momentos depois, os mais agitados já abrem os olhos, flectem os joelhos. Sorriem.
"Já começam a acusar cansaço depois de duas semanas", segreda-nos Ana Sofia Santos, a formadora portuguesa que se juntou este ano à equipa da Academia Internacional de Teatro para Crianças, pela primeira vez a trabalhar em Portugal. Fundada em Paris em 1986, a equipa encabeçada por Elisabeth Toulet, Christine Saillet e Francisco Marques, um português radicado em França, tem desenvolvido projectos de educação artística e teatral junto das comunidades infantis em países como o Canadá, a Bélgica, a Itália, o Líbano, o Senegal, a Argélia e o Chile.
Há vários anos a funcionar na Bélgica durante o Verão, a academia teve agora condições para juntar em Almada, durante três semanas, 36 crianças e jovens entre os 8 e os 14 anos. Convivem, aprendem e trabalham arduamente. Parte do que fazem durante o dia de trabalho, que começa às 10h00 e termina às 18h30, tem um objectivo definido: ensaiar uma peça que será levada à cena nos próximos dias 23 e 24, no Teatro da Comuna, em Lisboa. Pássaro Azul é o nome.
Os exercícios são para ajudar a crescer, numa atmosfera onde a criatividade e a relação com o outro são como o oxigénio.
A meio da manhã afinam-se as gargantas. As letras das canções estão escritas em cartazes afixados nos espaldares do ginásio. Todos cantam em francês, português e inglês.
As canções são o ponto mais alto das manhãs. Elas farão parte do repertório doPássaro Azul, bem como algumas coreografias que são treinadas nos exercícios de expressão corporal. Os textos só serão entregues daí a uns dias. O mais importante agora é treinar o corpo e a voz.
O canto e o movimento fazem parte deste espectáculo, adaptado de um texto original de Maurice Maeterlink. É quase um musical, mas muito mais do que isso. O encenador, Júlio Martín da Fonseca, explica-nos: "O Pássaro Azulsimboliza a procura da felicidade, não a felicidade simples de alguém que come um gelado num dia de Verão, mas a felicidade que nos dá uma razão de viver."
É este o espírito de toda a academia. Sente-se em cada pormenor da organização e até no espaço de acolhimento, que respira paz do alto da escarpa almadense. Do outro lado, Lisboa estende-se numa paisagem de tirar o fôlego. É a cidade, de uma ponte à outra, que por momentos as crianças contemplam em silêncio ao fim do dia.
Os telemóveis, os computadores, as televisões, os Mp3 não têm espaço durante as três semanas. Os adultos que compõem a equipa asseguram-se da comunicação com os pais. Escrevem-se cartas em vez de se enviarem emails. Brinca-se, joga-se, dança-se, ri-se, lê-se, canta-se, em vez de se passarem horas à frente de um computador.
É a segunda vez que o belga Hugo d"Ursel, de 12 anos, participa na academia. No ano passado, na terra natal, a experiência foi diferente: "Foi giro, mas foi mais clássico. Aqui fazemos muitos ateliers." Cantar é o que mais gosta de fazer o franco-senegalês Francisco Pereira, de nove anos - embora confesse, um pouco envergonhado, que não gosta "de cantar sozinho". Fica admirado, duas semanas depois, por saber que Hugo é belga, uma vez que ambos falam francês.
Sem telemóveis e Internet, a portuguesa Beatriz Ramos, de 14 anos, vacila quando lhe perguntamos se sente falta das tecnologias. "Só me lembro que essas coisas existem quando me falam disso." A francesa Johanna, 12 anos, pela terceira vez a participar, ri-se, admite que lhes sente um pouco a falta.
Ainda não sabem se querem ser actores, mas não é para isso que ali estão. "O teatro ajuda-nos a ganhar confiança em nós mesmos. Podemos dizer as coisas livremente." É a pequena Julia Munoz, de 12 anos, franco-portuguesa, quem o diz.
"É graças ao empenho do senhor Orlando que estamos aqui. Ele já emagreceu muito para nos trazer a Portugal." O monitor angolano Nélson Cabanga, 20 anos, parece tímido mas diz as coisas de forma certeira. "Tenham respeito pela minha barriga", brinca Orlando Domingos, o "pai" da missão de trazer um grupo de cinco crianças angolanas e três monitores a Portugal.
Fazem parte da associação juvenil Globo Dikulu, do município do Cazenga, na periferia de Luanda. "Nós apoiamos as crianças desta região para poderem participar em actividades nos seus tempos livres, para que se desviem das más práticas", explica Orlando. A parceria com a Academia Internacional de Teatro para Crianças surgiu quando Francisco Marques e Christine Saillet visitaram o seu centro de educação artística e organizaram um estágio de formação em que várias crianças foram convidadas a participar. As que se destacaram ganharam lugar na academia, em Portugal.
"Escolhemos 12 crianças, mas só puderam vir cinco. Alguns pais fizeram um esforço suplementar para poderem pagar as passagens dos filhos. Pediram empréstimos e adiantamentos de salário. A organização da academia também fez outro esforço", explica Orlando.
Os cinco seleccionados são, aos olhos de todos, os mais esforçados e os que têm mais "sede de aprender", diz Elisabeth Toulet, fundadora da academia. Cássia Armando, 14 anos, João Domingos, de 15, Wagner Mateus, de 14, Edna Menezes, de 13, e Madalena Gola, de 14 fazem teatro há um, dois, três anos no centro de educação artística no Cazenga. Todos falam do seu amor pelo teatro. "Foi algo que começou do nada e que se tornou quase tudo", diz Cássia. Edna reforça: "Para mim o teatro é como uma mãe ou como um pai. Não há nenhuma arte melhor." Madalena acredita que o teatro "é uma bela arte, porque não ensina só a representar, também educa".
João gosta muito de comédia e até se vê um dia a fazer filmes comos os do Mr. Bean. Já Madalena gosta mais do drama. Edna encolhe os ombros: "Tanto faz, gosto de tudo." Na academia dançam, cantam e encarnam personagens. "Gosto do modo de ensino dos professores. Da união entre as crianças aqui. Não estava à espera de encontrar este ambiente", confessa Wagner.
Na próxima sexta-feira é o grande dia da apresentação ao público na Comuna. Cássia, que usa as asas azuis na peça, está ansiosa. O encenador revela-nos: "O Pássaro Azul é uma viagem que estas crianças vão fazer, uma procura. E o que vamos descobrir é que o Pássaro Azul não é exterior a nós. Ele está dentro de nós."

18.08.2013