Tal
como um cientista crescido, deu uma palestra, com PowerPoint e nomes
científicos incluídos, no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. Título: O mais novo paleontólogo que
conhecemos. Tudo começou com uns desenhos animados na televisão e muitos
livros de dinossauros oferecidos pelo pai.
É
dia de festa no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. A Orquestra Geração afina
os instrumentos para o concerto que vai animar os convidados. Na rua, fazem-se
experiências químicas junto da recém-inaugurada tabela periódica que preenche
uma das paredes daquela que é por excelência a casa da ciência no Parque das
Nações. O azoto líquido faz as delícias das crianças, de bocas e olhos abertos,
enquanto o monitor da actividade manuseia o componente como se fizesse um
truque de ilusionismo. O Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva faz 14 anos, é
dia de inaugurar uma exposição interactiva como se estivéssemos numa oficina,
de ver a uma peça de teatro sobre a água, mas é sobretudo dia de conhecer
Afonso Vaz Pinto, um pequeno paleontólogo.
Chega
acompanhado da família. Vieram de Angola há uns dias, como fazem muitas vezes
no Verão, quando tiram férias. O pai, Pedro Vaz Pinto, é o biólogo que mais tem
defendido a conservação da palanca--negra, símbolo da fauna angolana, em vias
de extinção.
Daí
a uns minutos, o pequeno paleontólogo fará a primeira palestra da sua vida. Tem
apenas oito anos. Nada tem de pomposo quando o avistamos de T-shirt azul, sorridente, pele muito morena. É
um menino como todos os outros, gosta de brincar, é bom aluno, mas sente-se
como peixe na água quando lhe pedem para falar de fósseis. E não fala por
falar, sabe o que diz, emprega os nomes científicos, memoriza palavras
compridas que até um adulto não conseguiria pronunciar.
Afonso
Vaz Pinto nasceu em Portugal, mas é angolano. Desde os cinco anos que sonha com
dinossauros, época em que costumava ver uns desenhos animados na televisão,
onde os animais pré-históricos eram as estrelas. "Chamava-se o Comboio dos Dinossauros",
recorda, como se tal coisa lhe tivesse sucedido há muitos anos. O interesse
transformou-se em fascínio, sobretudo alimentado pelo pai, que lhe comprava
livros e mais livros sobre dinossauros.
A
caminho do 4.º ano, já sabe que não pode falar muito sobre o seu passatempo aos
amigos da escola, até porque "eles não querem saber de dinossauros, estão
mais virados para a tecnologia" e ele é um convicto admirador das coisas
antigas. Já foi chamado ao quadro pela professora para falar sobre a sua
paixão, os fósseis, mas nunca lhe tinha passado pela cabeça fazer uma palestra,
como a que fez na última quinta-feira, sobre paleontologia, a que o Pavilhão do
Conhecimento deu o título O
mais novo paleontólogo que conhecemos.
Traz
um PowerPoint com explicações científicas e com as novidades das suas
descobertas. Diz que não está nervoso e até parece que faz isto todos os dias.
"Em
Angola, só foi descoberto um único dinossauro, o Angolatitan", conta-nos,
antes de iniciar esta nova experiência como conferencista. O resto são répteis
marinhos e pterossauros, ou seja, répteis voadores. É aqui, na desmistificação
de que nem todos os répteis pré-históricos são dinossauros, que o paleontólogo
júnior insiste e, na apresentação no PowerPoint, quer chamar a atenção para
isso. "Os dinossauros são terrestres, apesar de terem vivido ao mesmo
tempo que os répteis marinhos e voadores e de se terem extinguido também ao
mesmo tempo."
A
história de Afonso Vaz Pinto cruza-se com a do paleontólogo português Octávio
Mateus, que tanto escava na Lourinhã, sua terra-natal, como em Angola, onde
está por estes dias. Foi o investigador português que descobriu oAngolatitan em 2011, no decorrer do projecto
PaleoAngola. Afonso chama-lhe "paleontólogo famoso" e tem-no como
amigo e professor. "O Octávio ensinou-me muitos nomes de fósseis."
Não se recorda bem de como o conheceu, mas é como se sempre tivesse feito parte
da sua vida.
Sempre
que ambos estão em Angola, Afonso junta-se à equipa de Octávio Mateus e
participa nas escavações. Não consegue passar sem isto, nem consegue tirar os
olhos do chão e das paredes das montanhas. Foi assim, quando tinha sete anos,
que fez aquele que considera ser o seu primeiro grande achado paleontológico,
em Bentiaba, perto do Lubango, onde mora com a família: "Estávamos a andar
de carro, olhámos em frente e dissemos: "Isto é um osso?" Ainda
pensámos que era uma raiz, mas depois saímos do carro e vimos que tinha
dentes!", relata Afonso, abrindo as mãos para mostrar o tamanho da
mandíbula de um mosassauro, um réptil marinho, que encontrou há cerca de dois
anos.
A
sua outra grande descoberta é portuguesa. "Só descobri um único
dinossauro, aqui em Portugal, na Lourinhã", conta, com orgulho. Foi
convidado por Octávio Mateus para participar numa escavação com outros dois
paleontólogos, e, enquanto Afonso Vaz Pinto dava um passeio, com os olhos cravados
no chão, encontrou algo que lhe pareceu ser osso. "Um dos paleontólogos
disse que aquilo era uma pedra e que eu devia deitar fora. Mas depois o outro
sugeriu que fizéssemos um truque para ver se era osso ou pedra. Passas a língua
no lábio e depois beijas o fóssil, se colar é osso, se não colar é pedra",
descreve com a simplicidade da sua experiência de vida. "Um paleontólogo
fez isso... colou e começou a gritar: "É osso, é osso!""
O
osso era afinal a base de um espinho de um Miragaia
longicollum, pertencente à família dos estegossauros. "Mas era uma
espécie diferente porque tinha 17 vértebras no pescoço, enquanto os outros só
têm apenas quatro ou cinco. Agora o meu achado vai para ao Museu da
Lourinhã."
Desde
aí, não tem parado de coleccionar fósseis de répteis marinhos, dentes de
tubarão e de outros peixes que encontra nas suas prospecções em Angola. "À
porta de minha casa tenho os fósseis mais antigos do mundo. Olhava para o chão
e via muitos dentes diferentes. Há um dente de tubarão que tem duas cúspides de
lado que se chama Cretolamna
biauriculata."
As
explicações continuam, Afonso Vaz Pinto não faz qualquer esforço para se
recordar de tudo o que nos diz. Fala de estromatólitos, que viveram há cerca de
1100 milhões de anos no território que agora é Angola, como quem fala de um
qualquer assunto banal: "Há uma zona muito perto do Lubango, que é
Humpata, que tem umas falésias cheias desses fósseis, que são os
estromatólitos. Eram bactérias que cresciam de baixo de água, mas à medida que
[o nível] da água subia [bastante], as bactérias morriam."
Em
casa, no Lubango, a colecção vai-se avolumando. "Os fósseis que tenho
agora estão todos guardados em casa, estão limpos e protegidos, todos prontos
para ir para o museu", explica Afonso, que acalenta o sonho de construir
uma casa para a paleontologia angolana no Lubango.
Foi
o pai que lhe transmitiu a ideia de que os seus achados não lhe pertenciam, mas
sim à ciência. É um projecto para o futuro, mas ainda em fase embrionária. A
mandíbula de mosassauro, descoberta que tanto o orgulha, está guardada numa
caixa à espera do dia de ser mostrada ao público angolano.
Para
já, o período de férias em Portugal sabe-lhe bem. Além da habitual ida ao Museu
da Lourinhã - onde se encontram os ovos de dinossauros carnívoros mais antigos do
mundo, com 150 milhões de anos -, que visita sempre que pode, delicia-se com a
exposição Quando as galinhas
tinham dentes, no Pavilhão do Conhecimento até 8 de Setembro e onde os
dinossauros parecem de verdade. Conhece-os todos e o Tyrannosaurus rex não é o seu preferido. "Gosto de
todos", diz, encolhendo os ombros. Todos gostam do T-rexou doTriceratops ou dos enormes braquiossauros, por
isso não tem piada escolher os mesmos. Mas, pensando melhor, elege o Stygimoloch. "Era um
paquicefalossauro, herbívoro e mais ou menos da minha altura. Gosto dele porque
tem um capacete oco com espinhos e cornos na cabeça."
Não
tem dúvidas quanto à profissão que quer ter. "Se não for paleontólogo, vai
ser muito difícil esquecer estas coisas todas." Insistimos: e se não for
paleontólogo? Detém-se uns segundos a pensar e, sem encontrar outras opções,
abana por fim a cabeça, rejeitando a ideia. "Não, tenho mesmo de
ser!"
A
hora de discursar aproxima-se. O átrio do pavilhão está cheio de convidados
para o ouvirem e Rosalia Vargas, directora da Ciência Viva-Agência Nacional
para a Cultura Científica e Tecnológica, apresenta-o. Foi numa expedição que a
equipa do Ciência Viva fez há uns meses ao deserto do Namibe, no Sudoeste de
Angola, que conheceram Afonso, "no terreno, em plena acção".
"Andava à procura de fósseis de tubarões, de répteis marinhos e de peixes
com mais de 70 milhões de anos", conta Rosalia Vargas. "É uma
inspiração para os mais novos. Diria mais, é uma inspiração mesmo para os
adultos."
Ele
avança para a tribuna e, esticando o pescoço na direcção do microfone, inicia:
"Olá, eu sou o Afonso e vou falar-vos das minhas aventuras paleontológicas
em Angola."
1.08.2013