Recusa o rótulo de
menina-prodígio, mas assume uma certa hiperatividade que mistura com rebeldia e
uma dose considerável de curiosidade. Aos 59 anos, Gabriela Carvalho,
olisipógrafa, acumula aulas, tertúlias, livros e experiências que se resumem no
sorriso franco de uma mulher que é, acima de tudo, filha, mãe e avó.
As
paredes do escritório de Gabriela Carvalho quase não se vislumbram. Estão
forradas de estantes com livros que parecem ter vida e que sussurram histórias
intermináveis do que testemunharam ao longo de muitos anos. Uma atividade
fervilhante de escrita e pesquisas, horas infindáveis de trabalho, discussões, ideias
e resultados. A preencher o restante branco das paredes estão alguns quadros, a
maior parte retratando Lisboa, um ou outro da autoria de Gabriela. O espaço é
uma confluência de saberes, até porque a olisipógrafa o divide, ocasionalmente,
com a neta, que ali costuma fazer os seus deveres escolares.
Gabriela
é um misto de coisas, mas é, acima de tudo, uma mulher de família, com a mãe
junto de si, e a filha, o genro e a neta no andar de baixo: “Somos quatro patas, a minha mãe, eu, a
minha filha e a minha neta”, explica. Aliás, a casa onde vive, nos Anjos, é
ela própria um baluarte de memórias que remontam à sua infância bem lisboeta.
Aprendeu
a ler aos quatro anos com a mãe, Maria Helena, na Cartilha João de Deus. E aos cinco,
foi para a Escola n.º 26 dos Anjos. A tradição haveria de repetir-se com a
filha, Eliana, e com a neta, Bruna.
Descreve-se,
em menina, com facilidade: “Roliça,
engraçada, com feitio de Carneiro, cabelos compridos, uma trança muito grande”.
Talvez por ser filha única, arranjou formas de compensar a falta de irmãos. Andava
sempre atrás dos velhotes para os ajudar a atravessar a rua e adorava ver-se
rodeada de crianças mais pequenas do que ela, “tinha a mania que era a mãe de todos”, diz, sorrindo. Desses
tempos, recorda-se sobretudo da professora da primeira classe e de como se
sentiu preocupada por aquele ser o último ano em que iria dar aulas: “Para mim, ela representava a descoberta do
mundo”, diz com os olhos fixos na secretária.
Existe
uma espontaneidade muito natural nos seus modos. Fala com as mãos, mas
sobretudo com os olhos, que já não veem tão bem como em menina. É fácil
imaginar Gabriela, nos finais dos anos 50, senhora de sua trança, em pontas dos
pés e com as mãozitas agarradas à borda da mesa do bilhar do Café Gelo, no
Rossio, vigiando atentamente o jogo entre o pai e os amigos. Recorda-se bem do
aviso do progenitor para que se afastasse e de, segundos depois, não tendo
obedecido, levar com uma bola de bilhar na testa.
Ainda
hoje a rebeldia e a curiosidade são traços da sua personalidade. Em criança,
aprendeu a ouvir as conversas dos adultos e soube desde o princípio o que era
uma ditadura, até porque se falava de política em casa. A família era bastante
crítica em relação ao governo de Salazar e por isso, Gabriela sempre teve um
acompanhamento muito grande quer da parte do pai quer da mãe. “E havia coisas que, mesmo eu sendo
pequenita, achava que eram anormais”, conta Gabriela.
Recorda
o pai como um homem exigente, mas generoso. Trabalhava nos Serviços Médicos da
CP e a sua posição de chefia permitiu-lhe ajudar vários funcionários da
Companhia. Muitos outros haveriam de sair de Portugal, clandestinos, pelas suas
mãos.
“Não estudava nada”
A
Matemática foi uma das grandes paixões que Gabriela Carvalho partilhou com o
pai, que sempre a habituou a fazer as contas de cabeça: “Hoje vou ao supermercado e sei quanto é que tenho de pagar no fim, com
o cesto cheio”, diz. O pai costumava dar explicações às crianças do bairro,
bem como a Gabriela, mas a mãe acabou logo com a brincadeira até porque “santos da casa não fazem milagres” e a
partir daí estudou sempre sozinha.
Hoje
é com a neta que partilha a paixão antiga pelos números e operações, na mesma
secretária onde produz os seus livros e corrige os trabalhos dos seus alunos.
Bruna, de 8 anos, tez trigueira e misto de timidez com marotice, diz da avó: “A Gabriela é muito boa professora. Gosto
quando me ensina Inglês, mas sobretudo Matemática, que é a minha disciplina
preferida”. De tal forma o humor é uma característica de família que até
Bruna trata a avó pelo nome próprio, depois de uma brincadeira que ambas
partilharam há uns anos. “Além disso, avó é a minha mãe. Eu sou a tia”,
ironiza Gabriela, fitando a neta com olhos de orgulho.
Quando
terminou a 4.ª classe, Gabriela fez o exame de admissão para prosseguir os
estudos e foi admitida no Liceu Filipa de Lencastre, onde ficou até ao antigo
7.º ano, hoje equivalente ao 11.º. No entanto, aos 14 anos decidiu
matricular-se no bacharelato em Psicologia, no Instituto Superior de Psicologia
Aplicada (ISPA), onde podia entrar com o 5.º ano. E fez o liceu, o bacharelato
e ainda um curso de Guia-Intérprete em dois anos.
Hoje
seria impensável um jovem ter esta quantidade de habilitações aos 16 anos e a
pergunta impõe-se: como é possível estudar tanto? “Não estudava nada”, responde entre risos, mas depois desmistifica
o significado da expressão: “Arranjei
capacidade para ouvir as pessoas e por isso só precisava de estar com atenção
nas aulas e de fazer umas leituras em casa”.
Simultaneamente
fez umas cadeiras de Ciências num colégio particular, até porque ainda estava
muito indecisa quanto ao curso superior a seguir. Já no final do 7.º ano, um
dia chegou a casa e disse aos pais que tinha tido um 20 no exame de Matemática.
Perguntaram-lhe se afinal iria seguir aquela área, mas Gabriela respondeu de
imediato: “Não, vou para História”. E
com 16 anos entrou na Faculdade de Letras de Lisboa.
Esteve
pouco mais de dois anos na faculdade, até que, em 1972, no ano em que mataram Ribeiro
Santos, estudante de Direito, fez um discurso à frente de toda a gente, PIDE
incluída. Depois, ficou proibida de fazer a matrícula na Universidade e teve de
escolher um novo destino para estudar. Com Espanha fora da equação, Gabriela
rumou a Paris com 19 anos, onde acabou por completar os estudos de Psicologia e
onde conheceu o português com quem veio a casar. “Eu julgava que me cortavam as pernas, mas afinal deram-me asas para
voar”, assegura Gabriela.
A
Revolução dos Cravos trouxe-a e ao marido de volta a Lisboa, onde começou a ser
guia-intérprete e a dar aulas no Instituto de Novas Profissões (INP). Mas havia
uma ponta solta na vida de Gabriela Carvalho: a História, que ficara incompleta
uns anos antes. Pediu que lhe fossem dadas equivalências, mas, vendo o seu
pedido recusado, não desarmou e concorreu de novo à Faculdade de Letras de
Lisboa, mesmo depois de ter tido a sua filha recentemente. Seguindo a sua
máxima habitual, ‘não estudou nada’ e tirou 17, 18 e 20 nos exames de ingresso.
A
História, a que já tinha aprendido e a que começava a ensinar, começou-a do
princípio, em 1976, e terminou-a passados quatro anos. Depois do 25 de Abril, “o ambiente na Faculdade de Letras era
ótimo”, recorda com um sorriso estampado no rosto. “Fazíamos trabalhos em casa uns dos outros. Éramos todos amigos.”
Um olhar diferente sobre
o património
Gabriela
admite ter uma mente hiperativa e um gosto notório pela arte de conversar: “Quando fazia camisolas de malha, costumava
dizer à minha mãe que se a minha mão trabalhasse à velocidade da minha mente
ficava ali com um armário cheio de camisolas”, brinca a historiadora. E
talvez por ter desenvolvido desde cedo uma grande apetência para a comunicação,
para a História e para as línguas, Gabriela não podia ter iniciado a sua
carreira profissional de outro modo que não pelo Turismo.
Enquanto
guia-intérprete, fazia essencialmente visitas em museus e monumentos e assim
começou a cruzar conceitos e a olhar para o património de forma diferente. De
tal modo influenciou outros guias-intérpretes, a quem deu formação, que muitos
dizem existir um Museu Nacional de Arte Antiga ou um Mosteiro dos Jerónimos antes da Gabriela e depois da Gabriela. A justificação é dada pela própria: “O meu olhar sobre as coisas é diferente
do dos guias”, explica. “Esses
olhares são extremamente importantes quando descobrimos os símbolos que não são
visíveis a toda a gente. Se não se faz a psicologia da História não se chega a
lado nenhum”, conclui.
Sofia
Fonseca, uma ex-aluna da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril
(ESHTE), recorda este olhar: “A Gabriela
dá graça e leveza à palavra cultura,
ela apaixona-nos. Consegue fazer uma síntese contagiante dos temas que aborda”.
E
é a curiosidade incessante que a faz espreitar além de portas semicerradas em
prédios pombalinos e meter conversa com os mais velhos dos bairros históricos,
em busca de tradições e estórias do ‘antigamente’. “Ando sempre com o nariz metido nas coisas”, conta com olhar
matreiro. “É uma atitude de vida.” E
assim vai acumulando e sintetizando todo o conhecimento aprendido, com memória
de elefante, ouvido aguçado, vontade contínua de aprender mais. E com esta
atitude, a mulher, licenciada em Psicologia, Turismo e História, torna-se a
mulher olisipógrafa.
Aliás,
um olisipógrafo é, à semelhança do que Gabriela define, uma pessoa que estuda
Lisboa ao longo de uma vida inteira, até “porque
a cidade nunca está estudada”, afirma. É ter “um manancial de conhecimentos constantes que se vão enredando”, e
esta parece ser a definição da própria Gabriela Carvalho, que conhece a
História de Portugal e o património lisboeta como a palma da sua mão.
E
para os leitores que não sabem o que é a Olisipografia, Gabriela ensina: “É o estudo da cidade de Olisipo, ou seja
da cidade de Lisboa. Distingue-se das áreas de estudo de outras cidades porque
foi uma palavra criada eruditamente pelos primeiros olisipógrafos (que não eram
chamados assim no princípio do século XX) e que acabou por se transformar numa
ciência”. E não é somente a história cronológica de Lisboa que surge
associada a esta disciplina, mas também as perspectivas arqueológica,
arquitetónica, geográfica, artística, sociológica, antropológica, entre outras.
E
mais uma vez a palavra ‘património’ parece resumir todas essas vertentes, como
se fosse produto de um emaranhado de conceitos multidisciplinares. A finalidade
da Olisipografia é, em última instância, “educar
as pessoas para que as coisas não se percam, para que se criem laços de
pertença”, esclarece.
Gabriela
levanta-se num ápice para ir em busca de um exemplo e desaparece por trás de
uma porta. Regressa pouco depois com um pequeno pão duro embrulhado num papel
branco como se fosse um rebuçado. Aquele objeto que tem na mão é património, afirma
Gabriela. É o Pão de Santo António, que poucos lisboetas conhecem, mas que
representa uma longa tradição ligada a superstições populares.
O
pão, que é feito sem fermento para que dure muitos anos, geralmente é vendido à
porta da Igreja de Santo António no dia 13 de junho. “Diz a tradição, que remonta aos finais do século XIX, que deve ser
adquirido quando alguém se casa.” A tradição mandava ainda que eram
necessários, além do pão, um saleiro, uma almotolia de azeite e duas placas de
carvão. “São estas coisas que nos dão
identidade”, refere.
O
património há de ser sempre a sua ‘palavra’, aquela pela qual se debate todos
os dias: “Já que existe uma coisa
chamada Plano Nacional de Leitura, penso que também deveria haver um Plano
Nacional do Património”, sugere Gabriela. “E o património não são só casas, monumentos e estátuas”,
prossegue, “é a história da cidade, das
pessoas, das suas vivências”, remata.
Esse
processo de ‘educação’ em relação ao património é algo que a historiadora tem
encetado ao longo de toda a sua experiência profissional, quer como professora
universitária quer como Técnica Superior na Câmara Municipal de Lisboa (CML),
onde desenvolveu, entre 1990 e 2008, uma quantidade inacreditável de projetos e
cargos.
“Falar com as pessoas
olho no olho”
Gabriela
Carvalho entrou para a CML em 1990, por convite de Rui Godinho, o vereador da
Reabilitação Urbana, que a foi buscar porque precisava de historiadores que se interessassem
pelo património de Lisboa nos gabinetes técnicos locais. E convidou-a para ir
trabalhar para o Bairro Alto, onde teria de realizar o levantamento do
património histórico da zona. “Apaixonei-me
pelo Bairro Alto e acabei por fazer vários projetos que não tinham nada a ver
com o património”, conta a historiadora, como quem confessa uma traquinice
de menina.
É
por esta altura que o nome de Gabriela Carvalho começa a estar associado à
Reabilitação Urbana, na cidade de Lisboa. Muito graças ao amigo de longa data,
Filipe Lopes, arquiteto, urbanista e Diretor Municipal da CML, com quem montou
uma associação ligada à temática da reabilitação. Foi o homem que a convidou
para desempenhar o cargo de Delegada dos Projetos Comunitários da Reabilitação
Urbana, função que exerceu entre 1991 e 2001: “O projeto do Bairro Alto acabou por ser um bom exemplo de reabilitação”,
explica a historiadora. “Como eu falava
cinco línguas, o Filipe pensou que eu era a pessoa indicada”, justifica.
Ao
mesmo tempo foi responsável pelos Projetos de Pormenor do Bairro Alto, da
Mouraria, de Alfama e da Madragoa, passando a pente fino todo o património
histórico destes bairros.
Tempos
depois, a historiadora e o próprio Diretor Municipal, Filipe Lopes, foram
convidados para realizar uma peritagem do Conselho da Europa à Reabilitação
Urbana Portuguesa: “Nessa altura, eu e o
Filipe fomos considerados especialistas da Reabilitação Urbana no Conselho da
Europa”, conta Gabriela, reforçando, com orgulho humorado, a palavra
‘especialistas’. Depois, começaram a chamá-los para irem a outros países ensinar
a sua experiência: “Foi muito
importante, acabei por viajar imenso. Fui a Malaca ajudar a montar o Museu do
Mar e viajei pela Europa toda”, revela.
O
século XXI traria mudanças à vida da historiadora, com a saída de Filipe Lopes
da Direção Municipal da Reabilitação Urbana da CML. Entretanto, desde a vitória
de João Soares nas Autárquicas de 1995 que Gabriela era sondada para ir para a
Cultura. E, por isso, tratou de aviar malas e bagagens rumo a novos desafios,
corria o ano de 2001.
Foi
na Divisão de Divulgação e Comunicação Cultural, onde esteve entre 2003 e 2008,
que Gabriela começou a envolver-se mais profundamente na sua missão de educar
os lisboetas para o conhecimento e preservação do património. E resolveu criar
um projeto pioneiro, impregnado de muita da sua habitual carolice: os
Itinerários Temáticos Municipais, visitas guiadas por si nas várias zonas
históricas da cidade, às quartas-feiras e aos sábados, projeto que durou cerca
de cinco anos.
E
fizesse frio ou calor, Gabriela deu início a uma faceta diferente da divulgação
da Olisipografia, levando a população para as ruas: “Porque achava que as pessoas deviam conhecer a cidade”, explica. A
sua vasta experiência como guia-intérprete e professora auxiliaram-na neste
novo desafio: “Quando eu falo para o
público que tenho, estou virada para eles, tenho sempre o património atrás de
mim”, exemplifica. “Temos de falar
com as pessoas olho no olho.”
Concebeu
53 itinerários, percorreu inúmeras freguesias e deu a conhecer a História e o
Património de Lisboa a torrentes contínuas de curiosos. Hoje, o projeto
permanece um imenso sucesso pelas mãos de outros técnicos da CML, que beberam
da aprendizagem da olisipógrafa, e que não têm mãos a medir com tantas
solicitações. “É uma forma de fazer
serviço público”, afirma Gabriela, cujo livro Itinerários Temáticos de Lisboa continua a marcar presença nas
livrarias e nos postos de venda de locais turísticos da capital.
Foi
também através dos seus passeios por Lisboa que muitos dos seus participantes
haveriam de aprender e ganhar motivação para se lançarem em projetos de
animação turística. José Antunes, um dos sócios fundadores da empresa ‘Lisbon
Walker’, que se dedica à organização de passeios históricos em Lisboa, desde
2005, foi um deles: “Na altura,
conhecemos a Gabriela Carvalho e foi muito bom para o projeto porque ela
deu-nos bastante força”, conta José.
Sofia
Fonseca, ex-aluna, haveria de seguir um caminho semelhante ao fundar a empresa
‘A Fuga Perfeita’: “A Gabriela reforçou
a minha vontade de desenvolver produtos temáticos como forma de melhor conhecer
os lugares, as suas histórias e em particular Lisboa”, refere.
Hoje,
afastada da CML por requisição na ESHTE há quatro anos, Gabriela está a pleno
vapor na sua outra faceta que é ser professora. “Ainda tenho mais um ano de mobilidade, e embora o António Costa me
queira lá, ainda quero ficar mais um ano na Universidade. Depois logo se vê”,
diz com um encolher de ombros.
Aulas, tertúlias e
livros
Como
professora, Gabriela tem acumulado uma ampla experiência em áreas distintas:
História da Arte, Arquitetura, Artes Visuais, Moda e Traje, Urbanismo e Cidade,
Turismo e Reabilitação Urbana. Além de ter sido docente no INP, hoje leciona na
ESHTE, mas também na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa
(FAUTL).
Diogo
Trindade, ex-aluno de Design de Moda, da FAUTL, recorda com saudade a
professora de História da Moda e do Traje, que lhe telefonou um dia a dar os
parabéns por ter tido a melhor nota da turma, telefonema esse que o motivou a
prosseguir os estudos numa época em que se sentia desiludido com o ensino em
Portugal. Sofreu muitas influências da sua professora, mas “sobretudo de
um ponto de vista humano”, confidencia o ex-estudante. “Permitiu-me tomar as melhores decisões para o decorrer da minha vida
pessoal.”
Tendo tido
um grande apoio técnico e pessoal por parte de Gabriela Carvalho para a
realização do seu trabalho final de Mestrado, Diogo salienta ainda: “Mais do que ensinar, sempre se preocupou
em nos estimular e acentuar as nossas próprias formas de conceber o mundo. Em
pô-las em prática e acreditar na sua força, independentemente do resultado”,
declara Diogo Trindade.
Outra
das facetas de Gabriela Carvalho é a de moderadora de debates e tertúlias.
Recentemente, completou mais um ciclo das Tertúlias de Outono do Castelo de São
Jorge, reunindo dezenas de participantes curiosos em torno da história e do
património de Lisboa.
Teresa
Oliveira, gestora do Castelo, conheceu a olisipógrafa em 2002, na CML, mas foi
só em 2010 que aprofundaram o contacto: “Indicaram-me
o nome da Gabriela Carvalho como a pessoa indicada para poder comissariar um
programa que queríamos desenvolver sobre património”, diz a gestora da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação
Cultural (EGEAC), referindo-se às tertúlias. “A empatia, a admiração e a constante aprendizagem surgiram de imediato.”
Gabriela
já modera tertúlias desde 1993 e, à semelhança da adesão encontrada com os
Itinerários Temáticos, foi habituando os lisboetas às conversas sobre a sua
cidade. O primeiro local foi um restaurante galego chamado ‘A Mó’: “Chegávamos a ter 120, 130 pessoas quando
tinha capacidade para cem”, relembra
Gabriela. Mais tarde, passou para o ‘Forno do Alfarrabista’, na Mouraria, onde
as tertúlias tinham uma metodologia diferente: “Fazíamos ‘A palavra roubada ao pôr-do-sol’, às seis da tarde. Não
tínhamos convidados. Eu lançava o tema e iam-me roubando a palavra”,
recorda a historiadora. “Acabávamos por
ter tertúlias de três horas”, enfatiza.
Mas
para se ser olisipógrafo, não basta estudar Lisboa e contar as suas histórias
em visitas guiadas, aulas e tertúlias: “Tem de se deixar obra escrita, senão
fica tudo no ar”, assegura Gabriela. E assim, os livros empilham-se, pesados,
em cima da secretária. Mais uma vez o ecletismo. Além dos livros esperados
sobre Reabilitação Urbana e Turismo, Gabriela acrescenta à sua lista
publicações como A Intimidade do Tempo,
um ensaio em prosa poética ‘surrealista’ sobre a história de Lisboa, e dois ou
três roteiros gastronómicos que fogem da temática olisipográfica, até porque
Gabriela é uma conhecedora nata da enogastronomia portuguesa. Mais
surpreendente é Caixinha de Memórias,
um livro infantil de pequenos contos, dedicado à filha, Eliana.
Tem
ainda vários projetos em carteira, entre os quais Percursos pelas Paixões de Lisboa, livro a sair brevemente sobre restaurantes,
gastronomia, locais e atividades de lazer ao longo da história da capital.
Gabriela
Carvalho colaborou ainda na realização do livro ‘A Praça em Portugal’, ao qual
foi atribuído o Prémio ‘José de Figueiredo’ pela Academia Nacional de Belas
Artes, em 2008. Maria Calado,
historiadora e antiga vereadora da CML, que participou no mesmo projeto, é uma
das pessoas que melhor definem a perfilada. Trabalharam juntas muito tempo,
viajaram e partilharam o mesmo conceito de património: “A Gabriela é uma investigadora rigorosa, uma grande comunicadora,
cidadã consciente, atenta e interveniente”, defende. “São características muito próprias o seu pleno envolvimento nos
projetos em que se envolve, bem como uma grande capacidade para trabalhar em
equipa”, esclarece Maria Calado.
A
ex-vereadora sublinha ainda que Gabriela é uma “excelente companheira de viagem” e que “conjuga rigor e seriedade científica com o prazer da descoberta e o
gosto pela vida".
Lisboa: cidade iluminada
e iluminista
As
teses de mestrado que vai arguir nos próximos dias, empilhadas em cima da
secretária, as pastas que abre no portátil, recheadas de documentos a publicar
no futuro, e as rugas que lhe marcam o sorriso têm uma relação inevitável. Mas
Gabriela sabe que o cérebro humano precisa de pouco mais de quatro horas para
descansar, e o mesmo se passa com o seu. Não dorme mais do que cinco, nem
precisa. O tempo é bem gerido para fazer tudo o que lhe apetece: “Gosto de fazer várias coisas ao mesmo
tempo para não me aborrecer”, diz, mirando o manancial de ideias que o seu
escritório sugere. Daí não lhe sobrar tempo sequer para ter uma conta no
facebook.
Lisboa
é a sua inspiração. Sobre ela fala, escreve, pinta e até canta o fado, quando o
ambiente se proporciona. A alma da cidade sabe-lhe ao sal do Atlântico, às
especiarias do Índico e à ginjinha do Rossio, da qual recorda os concursos de
cuspir caroços. É uma alma que reflete uma luz única e que, embora pareça
cliché, é o que melhor caracteriza a cidade, de acordo com a olisipógrafa.
Com
raízes nos Anjos e uma paixão muito particular pelo bairro da Bica, Gabriela
tem dificuldade em identificar-se com um só local da cidade: “Não há nenhum sítio com o qual me
identifique mais em Lisboa do que em Lisboa toda”, responde, por fim.
Mas
a alma de Lisboa também a preocupa, e Gabriela percebe, como poucos, os riscos
que a cidade corre, sobretudo se uma nova catástrofe semelhante ao Terramoto de
1755 se abater sobre a capital: “Ninguém
consegue preparar-se para uma coisa destas”, afirma Gabriela.
Acredita
que a Baixa Pombalina está em verdadeiro perigo, até porque a engenharia
antissísmica dos prédios está a ser destruída pelos proprietários: “O que é que aguenta a Baixa Pombalina, é a
fachada? Não, são as gaiolas. A reabilitação da Baixa é refazer a gaiola[1]”.
E reforça que a cidade não está preparada face a outro cataclismo semelhante,
até porque o Iluminismo já passou de moda entre os arquitetos de hoje em dia.
Não
é uma questão de má memória que parece afetar o povo em geral. “Pior do que ter má memória é não ter
memória. Não aprendemos com os erros dos outros”, lamenta Gabriela. A
História é como a Psicologia, sem ela, como saber a matéria de que é feito um
povo, um país, uma cidade? E por isso Gabriela Carvalho brinca com os mais
desprevenidos sobre a história de Lisboa, dizendo-lhes: “O que eu gostava era de fazer a Rua Augusta de barco”.
É
aliás este discurso provocatório e por vezes enigmático que cativa os que a
rodeiam. Muitos dos que conviveram e ainda convivem com Gabriela são unânimes
em sublinhar a sua sabedoria, o seu dinamismo, mas também o seu sarcasmo. Diogo
Trindade confessa: “O discurso
muitas vezes retórico com que nos responde a certas questões, mesmo com o
propósito de nos fazer pensar por nós próprios, consegue ser por vezes um pouco
exasperante”, diz, com
humor, o ex-aluno de Design de Moda.
Mas
é Sofia Fonseca quem resume o seu perfil: “Gabriela
é Lisboa, em todas as suas dimensões. O amor que tem pela cidade é
materializado nas suas palavras”.