sábado, 16 de novembro de 2013

Gabriela e Lisboa

Recusa o rótulo de menina-prodígio, mas assume uma certa hiperatividade que mistura com rebeldia e uma dose considerável de curiosidade. Aos 59 anos, Gabriela Carvalho, olisipógrafa, acumula aulas, tertúlias, livros e experiências que se resumem no sorriso franco de uma mulher que é, acima de tudo, filha, mãe e avó.

As paredes do escritório de Gabriela Carvalho quase não se vislumbram. Estão forradas de estantes com livros que parecem ter vida e que sussurram histórias intermináveis do que testemunharam ao longo de muitos anos. Uma atividade fervilhante de escrita e pesquisas, horas infindáveis de trabalho, discussões, ideias e resultados. A preencher o restante branco das paredes estão alguns quadros, a maior parte retratando Lisboa, um ou outro da autoria de Gabriela. O espaço é uma confluência de saberes, até porque a olisipógrafa o divide, ocasionalmente, com a neta, que ali costuma fazer os seus deveres escolares.
Gabriela é um misto de coisas, mas é, acima de tudo, uma mulher de família, com a mãe junto de si, e a filha, o genro e a neta no andar de baixo: “Somos quatro patas, a minha mãe, eu, a minha filha e a minha neta”, explica. Aliás, a casa onde vive, nos Anjos, é ela própria um baluarte de memórias que remontam à sua infância bem lisboeta.
Aprendeu a ler aos quatro anos com a mãe, Maria Helena, na Cartilha João de Deus. E aos cinco, foi para a Escola n.º 26 dos Anjos. A tradição haveria de repetir-se com a filha, Eliana, e com a neta, Bruna.
Descreve-se, em menina, com facilidade: “Roliça, engraçada, com feitio de Carneiro, cabelos compridos, uma trança muito grande”. Talvez por ser filha única, arranjou formas de compensar a falta de irmãos. Andava sempre atrás dos velhotes para os ajudar a atravessar a rua e adorava ver-se rodeada de crianças mais pequenas do que ela, “tinha a mania que era a mãe de todos”, diz, sorrindo. Desses tempos, recorda-se sobretudo da professora da primeira classe e de como se sentiu preocupada por aquele ser o último ano em que iria dar aulas: “Para mim, ela representava a descoberta do mundo”, diz com os olhos fixos na secretária.
Existe uma espontaneidade muito natural nos seus modos. Fala com as mãos, mas sobretudo com os olhos, que já não veem tão bem como em menina. É fácil imaginar Gabriela, nos finais dos anos 50, senhora de sua trança, em pontas dos pés e com as mãozitas agarradas à borda da mesa do bilhar do Café Gelo, no Rossio, vigiando atentamente o jogo entre o pai e os amigos. Recorda-se bem do aviso do progenitor para que se afastasse e de, segundos depois, não tendo obedecido, levar com uma bola de bilhar na testa.
Ainda hoje a rebeldia e a curiosidade são traços da sua personalidade. Em criança, aprendeu a ouvir as conversas dos adultos e soube desde o princípio o que era uma ditadura, até porque se falava de política em casa. A família era bastante crítica em relação ao governo de Salazar e por isso, Gabriela sempre teve um acompanhamento muito grande quer da parte do pai quer da mãe. “E havia coisas que, mesmo eu sendo pequenita, achava que eram anormais”, conta Gabriela.
Recorda o pai como um homem exigente, mas generoso. Trabalhava nos Serviços Médicos da CP e a sua posição de chefia permitiu-lhe ajudar vários funcionários da Companhia. Muitos outros haveriam de sair de Portugal, clandestinos, pelas suas mãos.

“Não estudava nada”

A Matemática foi uma das grandes paixões que Gabriela Carvalho partilhou com o pai, que sempre a habituou a fazer as contas de cabeça: “Hoje vou ao supermercado e sei quanto é que tenho de pagar no fim, com o cesto cheio”, diz. O pai costumava dar explicações às crianças do bairro, bem como a Gabriela, mas a mãe acabou logo com a brincadeira até porque “santos da casa não fazem milagres” e a partir daí estudou sempre sozinha.
Hoje é com a neta que partilha a paixão antiga pelos números e operações, na mesma secretária onde produz os seus livros e corrige os trabalhos dos seus alunos. Bruna, de 8 anos, tez trigueira e misto de timidez com marotice, diz da avó: “A Gabriela é muito boa professora. Gosto quando me ensina Inglês, mas sobretudo Matemática, que é a minha disciplina preferida”. De tal forma o humor é uma característica de família que até Bruna trata a avó pelo nome próprio, depois de uma brincadeira que ambas partilharam há uns anos. “Além disso, avó é a minha mãe. Eu sou a tia”, ironiza Gabriela, fitando a neta com olhos de orgulho.
Quando terminou a 4.ª classe, Gabriela fez o exame de admissão para prosseguir os estudos e foi admitida no Liceu Filipa de Lencastre, onde ficou até ao antigo 7.º ano, hoje equivalente ao 11.º. No entanto, aos 14 anos decidiu matricular-se no bacharelato em Psicologia, no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), onde podia entrar com o 5.º ano. E fez o liceu, o bacharelato e ainda um curso de Guia-Intérprete em dois anos.
Hoje seria impensável um jovem ter esta quantidade de habilitações aos 16 anos e a pergunta impõe-se: como é possível estudar tanto? “Não estudava nada”, responde entre risos, mas depois desmistifica o significado da expressão: “Arranjei capacidade para ouvir as pessoas e por isso só precisava de estar com atenção nas aulas e de fazer umas leituras em casa”.
Simultaneamente fez umas cadeiras de Ciências num colégio particular, até porque ainda estava muito indecisa quanto ao curso superior a seguir. Já no final do 7.º ano, um dia chegou a casa e disse aos pais que tinha tido um 20 no exame de Matemática. Perguntaram-lhe se afinal iria seguir aquela área, mas Gabriela respondeu de imediato: “Não, vou para História”. E com 16 anos entrou na Faculdade de Letras de Lisboa.
Esteve pouco mais de dois anos na faculdade, até que, em 1972, no ano em que mataram Ribeiro Santos, estudante de Direito, fez um discurso à frente de toda a gente, PIDE incluída. Depois, ficou proibida de fazer a matrícula na Universidade e teve de escolher um novo destino para estudar. Com Espanha fora da equação, Gabriela rumou a Paris com 19 anos, onde acabou por completar os estudos de Psicologia e onde conheceu o português com quem veio a casar. “Eu julgava que me cortavam as pernas, mas afinal deram-me asas para voar”, assegura Gabriela.
A Revolução dos Cravos trouxe-a e ao marido de volta a Lisboa, onde começou a ser guia-intérprete e a dar aulas no Instituto de Novas Profissões (INP). Mas havia uma ponta solta na vida de Gabriela Carvalho: a História, que ficara incompleta uns anos antes. Pediu que lhe fossem dadas equivalências, mas, vendo o seu pedido recusado, não desarmou e concorreu de novo à Faculdade de Letras de Lisboa, mesmo depois de ter tido a sua filha recentemente. Seguindo a sua máxima habitual, ‘não estudou nada’ e tirou 17, 18 e 20 nos exames de ingresso.
A História, a que já tinha aprendido e a que começava a ensinar, começou-a do princípio, em 1976, e terminou-a passados quatro anos. Depois do 25 de Abril, “o ambiente na Faculdade de Letras era ótimo”, recorda com um sorriso estampado no rosto. “Fazíamos trabalhos em casa uns dos outros. Éramos todos amigos.”

Um olhar diferente sobre o património

Gabriela admite ter uma mente hiperativa e um gosto notório pela arte de conversar: “Quando fazia camisolas de malha, costumava dizer à minha mãe que se a minha mão trabalhasse à velocidade da minha mente ficava ali com um armário cheio de camisolas”, brinca a historiadora. E talvez por ter desenvolvido desde cedo uma grande apetência para a comunicação, para a História e para as línguas, Gabriela não podia ter iniciado a sua carreira profissional de outro modo que não pelo Turismo.
Enquanto guia-intérprete, fazia essencialmente visitas em museus e monumentos e assim começou a cruzar conceitos e a olhar para o património de forma diferente. De tal modo influenciou outros guias-intérpretes, a quem deu formação, que muitos dizem existir um Museu Nacional de Arte Antiga ou um Mosteiro dos Jerónimos antes da Gabriela e depois da Gabriela. A justificação é dada pela própria: “O meu olhar sobre as coisas é diferente do dos guias”, explica. “Esses olhares são extremamente importantes quando descobrimos os símbolos que não são visíveis a toda a gente. Se não se faz a psicologia da História não se chega a lado nenhum”, conclui.
Sofia Fonseca, uma ex-aluna da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE), recorda este olhar: “A Gabriela dá graça e leveza à palavra cultura, ela apaixona-nos. Consegue fazer uma síntese contagiante dos temas que aborda”.
E é a curiosidade incessante que a faz espreitar além de portas semicerradas em prédios pombalinos e meter conversa com os mais velhos dos bairros históricos, em busca de tradições e estórias do ‘antigamente’. “Ando sempre com o nariz metido nas coisas”, conta com olhar matreiro. “É uma atitude de vida.” E assim vai acumulando e sintetizando todo o conhecimento aprendido, com memória de elefante, ouvido aguçado, vontade contínua de aprender mais. E com esta atitude, a mulher, licenciada em Psicologia, Turismo e História, torna-se a mulher olisipógrafa.
Aliás, um olisipógrafo é, à semelhança do que Gabriela define, uma pessoa que estuda Lisboa ao longo de uma vida inteira, até “porque a cidade nunca está estudada”, afirma. É ter “um manancial de conhecimentos constantes que se vão enredando”, e esta parece ser a definição da própria Gabriela Carvalho, que conhece a História de Portugal e o património lisboeta como a palma da sua mão.
E para os leitores que não sabem o que é a Olisipografia, Gabriela ensina: “É o estudo da cidade de Olisipo, ou seja da cidade de Lisboa. Distingue-se das áreas de estudo de outras cidades porque foi uma palavra criada eruditamente pelos primeiros olisipógrafos (que não eram chamados assim no princípio do século XX) e que acabou por se transformar numa ciência”. E não é somente a história cronológica de Lisboa que surge associada a esta disciplina, mas também as perspectivas arqueológica, arquitetónica, geográfica, artística, sociológica, antropológica, entre outras.
E mais uma vez a palavra ‘património’ parece resumir todas essas vertentes, como se fosse produto de um emaranhado de conceitos multidisciplinares. A finalidade da Olisipografia é, em última instância, “educar as pessoas para que as coisas não se percam, para que se criem laços de pertença”, esclarece.
Gabriela levanta-se num ápice para ir em busca de um exemplo e desaparece por trás de uma porta. Regressa pouco depois com um pequeno pão duro embrulhado num papel branco como se fosse um rebuçado. Aquele objeto que tem na mão é património, afirma Gabriela. É o Pão de Santo António, que poucos lisboetas conhecem, mas que representa uma longa tradição ligada a superstições populares.
O pão, que é feito sem fermento para que dure muitos anos, geralmente é vendido à porta da Igreja de Santo António no dia 13 de junho. “Diz a tradição, que remonta aos finais do século XIX, que deve ser adquirido quando alguém se casa.” A tradição mandava ainda que eram necessários, além do pão, um saleiro, uma almotolia de azeite e duas placas de carvão. “São estas coisas que nos dão identidade”, refere.
O património há de ser sempre a sua ‘palavra’, aquela pela qual se debate todos os dias: “Já que existe uma coisa chamada Plano Nacional de Leitura, penso que também deveria haver um Plano Nacional do Património”, sugere Gabriela. “E o património não são só casas, monumentos e estátuas”, prossegue, “é a história da cidade, das pessoas, das suas vivências”, remata.
Esse processo de ‘educação’ em relação ao património é algo que a historiadora tem encetado ao longo de toda a sua experiência profissional, quer como professora universitária quer como Técnica Superior na Câmara Municipal de Lisboa (CML), onde desenvolveu, entre 1990 e 2008, uma quantidade inacreditável de projetos e cargos.

“Falar com as pessoas olho no olho”

Gabriela Carvalho entrou para a CML em 1990, por convite de Rui Godinho, o vereador da Reabilitação Urbana, que a foi buscar porque precisava de historiadores que se interessassem pelo património de Lisboa nos gabinetes técnicos locais. E convidou-a para ir trabalhar para o Bairro Alto, onde teria de realizar o levantamento do património histórico da zona. “Apaixonei-me pelo Bairro Alto e acabei por fazer vários projetos que não tinham nada a ver com o património”, conta a historiadora, como quem confessa uma traquinice de menina.
É por esta altura que o nome de Gabriela Carvalho começa a estar associado à Reabilitação Urbana, na cidade de Lisboa. Muito graças ao amigo de longa data, Filipe Lopes, arquiteto, urbanista e Diretor Municipal da CML, com quem montou uma associação ligada à temática da reabilitação. Foi o homem que a convidou para desempenhar o cargo de Delegada dos Projetos Comunitários da Reabilitação Urbana, função que exerceu entre 1991 e 2001: “O projeto do Bairro Alto acabou por ser um bom exemplo de reabilitação”, explica a historiadora. “Como eu falava cinco línguas, o Filipe pensou que eu era a pessoa indicada”, justifica.
Ao mesmo tempo foi responsável pelos Projetos de Pormenor do Bairro Alto, da Mouraria, de Alfama e da Madragoa, passando a pente fino todo o património histórico destes bairros.
Tempos depois, a historiadora e o próprio Diretor Municipal, Filipe Lopes, foram convidados para realizar uma peritagem do Conselho da Europa à Reabilitação Urbana Portuguesa: “Nessa altura, eu e o Filipe fomos considerados especialistas da Reabilitação Urbana no Conselho da Europa”, conta Gabriela, reforçando, com orgulho humorado, a palavra ‘especialistas’. Depois, começaram a chamá-los para irem a outros países ensinar a sua experiência: “Foi muito importante, acabei por viajar imenso. Fui a Malaca ajudar a montar o Museu do Mar e viajei pela Europa toda”, revela.
O século XXI traria mudanças à vida da historiadora, com a saída de Filipe Lopes da Direção Municipal da Reabilitação Urbana da CML. Entretanto, desde a vitória de João Soares nas Autárquicas de 1995 que Gabriela era sondada para ir para a Cultura. E, por isso, tratou de aviar malas e bagagens rumo a novos desafios, corria o ano de 2001.
Foi na Divisão de Divulgação e Comunicação Cultural, onde esteve entre 2003 e 2008, que Gabriela começou a envolver-se mais profundamente na sua missão de educar os lisboetas para o conhecimento e preservação do património. E resolveu criar um projeto pioneiro, impregnado de muita da sua habitual carolice: os Itinerários Temáticos Municipais, visitas guiadas por si nas várias zonas históricas da cidade, às quartas-feiras e aos sábados, projeto que durou cerca de cinco anos.
E fizesse frio ou calor, Gabriela deu início a uma faceta diferente da divulgação da Olisipografia, levando a população para as ruas: “Porque achava que as pessoas deviam conhecer a cidade”, explica. A sua vasta experiência como guia-intérprete e professora auxiliaram-na neste novo desafio: “Quando eu falo para o público que tenho, estou virada para eles, tenho sempre o património atrás de mim”, exemplifica. “Temos de falar com as pessoas olho no olho.”
Concebeu 53 itinerários, percorreu inúmeras freguesias e deu a conhecer a História e o Património de Lisboa a torrentes contínuas de curiosos. Hoje, o projeto permanece um imenso sucesso pelas mãos de outros técnicos da CML, que beberam da aprendizagem da olisipógrafa, e que não têm mãos a medir com tantas solicitações. “É uma forma de fazer serviço público”, afirma Gabriela, cujo livro Itinerários Temáticos de Lisboa continua a marcar presença nas livrarias e nos postos de venda de locais turísticos da capital.
Foi também através dos seus passeios por Lisboa que muitos dos seus participantes haveriam de aprender e ganhar motivação para se lançarem em projetos de animação turística. José Antunes, um dos sócios fundadores da empresa ‘Lisbon Walker’, que se dedica à organização de passeios históricos em Lisboa, desde 2005, foi um deles: “Na altura, conhecemos a Gabriela Carvalho e foi muito bom para o projeto porque ela deu-nos bastante força”, conta José.
Sofia Fonseca, ex-aluna, haveria de seguir um caminho semelhante ao fundar a empresa ‘A Fuga Perfeita’: “A Gabriela reforçou a minha vontade de desenvolver produtos temáticos como forma de melhor conhecer os lugares, as suas histórias e em particular Lisboa”, refere.
Hoje, afastada da CML por requisição na ESHTE há quatro anos, Gabriela está a pleno vapor na sua outra faceta que é ser professora. “Ainda tenho mais um ano de mobilidade, e embora o António Costa me queira lá, ainda quero ficar mais um ano na Universidade. Depois logo se vê”, diz com um encolher de ombros.

Aulas, tertúlias e livros

Como professora, Gabriela tem acumulado uma ampla experiência em áreas distintas: História da Arte, Arquitetura, Artes Visuais, Moda e Traje, Urbanismo e Cidade, Turismo e Reabilitação Urbana. Além de ter sido docente no INP, hoje leciona na ESHTE, mas também na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa (FAUTL).
Diogo Trindade, ex-aluno de Design de Moda, da FAUTL, recorda com saudade a professora de História da Moda e do Traje, que lhe telefonou um dia a dar os parabéns por ter tido a melhor nota da turma, telefonema esse que o motivou a prosseguir os estudos numa época em que se sentia desiludido com o ensino em Portugal. Sofreu muitas influências da sua professora, mas “sobretudo de um ponto de vista humano”, confidencia o ex-estudante. “Permitiu-me tomar as melhores decisões para o decorrer da minha vida pessoal.”

Tendo tido um grande apoio técnico e pessoal por parte de Gabriela Carvalho para a realização do seu trabalho final de Mestrado, Diogo salienta ainda: “Mais do que ensinar, sempre se preocupou em nos estimular e acentuar as nossas próprias formas de conceber o mundo. Em pô-las em prática e acreditar na sua força, independentemente do resultado”, declara Diogo Trindade.
Outra das facetas de Gabriela Carvalho é a de moderadora de debates e tertúlias. Recentemente, completou mais um ciclo das Tertúlias de Outono do Castelo de São Jorge, reunindo dezenas de participantes curiosos em torno da história e do património de Lisboa.
Teresa Oliveira, gestora do Castelo, conheceu a olisipógrafa em 2002, na CML, mas foi só em 2010 que aprofundaram o contacto: “Indicaram-me o nome da Gabriela Carvalho como a pessoa indicada para poder comissariar um programa que queríamos desenvolver sobre património”, diz a gestora da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), referindo-se às tertúlias. “A empatia, a admiração e a constante aprendizagem surgiram de imediato.”
Gabriela já modera tertúlias desde 1993 e, à semelhança da adesão encontrada com os Itinerários Temáticos, foi habituando os lisboetas às conversas sobre a sua cidade. O primeiro local foi um restaurante galego chamado ‘A Mó’: “Chegávamos a ter 120, 130 pessoas quando tinha capacidade para cem”, relembra Gabriela. Mais tarde, passou para o ‘Forno do Alfarrabista’, na Mouraria, onde as tertúlias tinham uma metodologia diferente: “Fazíamos ‘A palavra roubada ao pôr-do-sol’, às seis da tarde. Não tínhamos convidados. Eu lançava o tema e iam-me roubando a palavra”, recorda a historiadora. “Acabávamos por ter tertúlias de três horas”, enfatiza.
Mas para se ser olisipógrafo, não basta estudar Lisboa e contar as suas histórias em visitas guiadas, aulas e tertúlias: “Tem de se deixar obra escrita, senão fica tudo no ar”, assegura Gabriela. E assim, os livros empilham-se, pesados, em cima da secretária. Mais uma vez o ecletismo. Além dos livros esperados sobre Reabilitação Urbana e Turismo, Gabriela acrescenta à sua lista publicações como A Intimidade do Tempo, um ensaio em prosa poética ‘surrealista’ sobre a história de Lisboa, e dois ou três roteiros gastronómicos que fogem da temática olisipográfica, até porque Gabriela é uma conhecedora nata da enogastronomia portuguesa. Mais surpreendente é Caixinha de Memórias, um livro infantil de pequenos contos, dedicado à filha, Eliana.
Tem ainda vários projetos em carteira, entre os quais Percursos pelas Paixões de Lisboa, livro a sair brevemente sobre restaurantes, gastronomia, locais e atividades de lazer ao longo da história da capital.
Gabriela Carvalho colaborou ainda na realização do livro ‘A Praça em Portugal’, ao qual foi atribuído o Prémio ‘José de Figueiredo’ pela Academia Nacional de Belas Artes, em 2008. Maria Calado, historiadora e antiga vereadora da CML, que participou no mesmo projeto, é uma das pessoas que melhor definem a perfilada. Trabalharam juntas muito tempo, viajaram e partilharam o mesmo conceito de património: “A Gabriela é uma investigadora rigorosa, uma grande comunicadora, cidadã consciente, atenta e interveniente”, defende. “São características muito próprias o seu pleno envolvimento nos projetos em que se envolve, bem como uma grande capacidade para trabalhar em equipa”, esclarece Maria Calado.
A ex-vereadora sublinha ainda que Gabriela é uma “excelente companheira de viagem” e que “conjuga rigor e seriedade científica com o prazer da descoberta e o gosto pela vida".

Lisboa: cidade iluminada e iluminista

As teses de mestrado que vai arguir nos próximos dias, empilhadas em cima da secretária, as pastas que abre no portátil, recheadas de documentos a publicar no futuro, e as rugas que lhe marcam o sorriso têm uma relação inevitável. Mas Gabriela sabe que o cérebro humano precisa de pouco mais de quatro horas para descansar, e o mesmo se passa com o seu. Não dorme mais do que cinco, nem precisa. O tempo é bem gerido para fazer tudo o que lhe apetece: “Gosto de fazer várias coisas ao mesmo tempo para não me aborrecer”, diz, mirando o manancial de ideias que o seu escritório sugere. Daí não lhe sobrar tempo sequer para ter uma conta no facebook.
Lisboa é a sua inspiração. Sobre ela fala, escreve, pinta e até canta o fado, quando o ambiente se proporciona. A alma da cidade sabe-lhe ao sal do Atlântico, às especiarias do Índico e à ginjinha do Rossio, da qual recorda os concursos de cuspir caroços. É uma alma que reflete uma luz única e que, embora pareça cliché, é o que melhor caracteriza a cidade, de acordo com a olisipógrafa.
Com raízes nos Anjos e uma paixão muito particular pelo bairro da Bica, Gabriela tem dificuldade em identificar-se com um só local da cidade: “Não há nenhum sítio com o qual me identifique mais em Lisboa do que em Lisboa toda”, responde, por fim.
Mas a alma de Lisboa também a preocupa, e Gabriela percebe, como poucos, os riscos que a cidade corre, sobretudo se uma nova catástrofe semelhante ao Terramoto de 1755 se abater sobre a capital: “Ninguém consegue preparar-se para uma coisa destas”, afirma Gabriela.
Acredita que a Baixa Pombalina está em verdadeiro perigo, até porque a engenharia antissísmica dos prédios está a ser destruída pelos proprietários: “O que é que aguenta a Baixa Pombalina, é a fachada? Não, são as gaiolas. A reabilitação da Baixa é refazer a gaiola[1]. E reforça que a cidade não está preparada face a outro cataclismo semelhante, até porque o Iluminismo já passou de moda entre os arquitetos de hoje em dia.
Não é uma questão de má memória que parece afetar o povo em geral. “Pior do que ter má memória é não ter memória. Não aprendemos com os erros dos outros”, lamenta Gabriela. A História é como a Psicologia, sem ela, como saber a matéria de que é feito um povo, um país, uma cidade? E por isso Gabriela Carvalho brinca com os mais desprevenidos sobre a história de Lisboa, dizendo-lhes: “O que eu gostava era de fazer a Rua Augusta de barco”.
É aliás este discurso provocatório e por vezes enigmático que cativa os que a rodeiam. Muitos dos que conviveram e ainda convivem com Gabriela são unânimes em sublinhar a sua sabedoria, o seu dinamismo, mas também o seu sarcasmo. Diogo Trindade confessa: “O discurso muitas vezes retórico com que nos responde a certas questões, mesmo com o propósito de nos fazer pensar por nós próprios, consegue ser por vezes um pouco exasperante”, diz, com humor, o ex-aluno de Design de Moda.
Mas é Sofia Fonseca quem resume o seu perfil: “Gabriela é Lisboa, em todas as suas dimensões. O amor que tem pela cidade é materializado nas suas palavras”.




[1] Sistema antissísmico de madeira que confere elasticidade aos edifícios.