segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Guiar turistas por conta própria

Em tempos de crise, estão a surgir cada vez mais empresas de animação turística em Lisboa. Os caminhos da liberalização do setor turístico estão a promover uns, mas também a preocupar outros: os guias-intérpretes, que já se queixam da diminuição de atividade

As faces dos turistas lisboetas estão avermelhadas do esforço da subida, duas horas e meia depois da partida na Casa dos Bicos. O sol espreita no miradouro da Graça e o grupo observa o rio e o casario de Lisboa enquanto recupera o fôlego. As guias do passeio, Raquel e Inês, ambas de t-shirt cor-de-laranja e casaco de malha castanho, despedem-se, com um sorriso. «Esperamos que tenham gostado», diz Raquel.
O grupo agradece e parte. Foi mais um passeio da Time Travellers, uma agência de animação turística que surgiu em Lisboa, em junho de 2011. Raquel Policarpo e Inês Ribeiro, ambas de 28 anos e arqueólogas de profissão, estão desde janeiro de 2012 a conduzir turistas através do tempo. Deram o passo necessário quando o cenário do emprego em Portugal as começava a preocupar: «Desde que vi uma empresa de turismo arqueológico, em Inglaterra, achei que era uma coisa que se podia fazer em Portugal, e quanto mais conhecia o nosso património, mais achava que podia dar resultado», recorda Raquel.
A arqueóloga recebeu a divulgação de um programa de apoio ao empreendedorismo feminino, o “Mulher Mais”, e candidatou-se logo, corria o ano de 2010. Percebeu depois que o projeto que tinha em mãos precisava de mais uma pessoa e, por isso, surgiu Inês Ribeiro, antiga colega de faculdade e amiga de Raquel. Acabaram por fazer a formação juntas. Tempos depois, surgia a empresa.
O exemplo da Time Travellers é apenas um entre os vários exemplos de agências de animação turística, que surgiram em Lisboa, nos últimos anos. O Registo Nacional de Agentes de Animação Turística (RNAAT), organismo adstrito ao Turismo de Portugal, criado em 2009, tem inscritas, na capital, 92 empresas que oferecem serviços diversificados em terra, na água ou no ar (designações próprias utilizadas pelo RNAAT). São negócios que se alimentam do turismo nacional e estrangeiro e que exploram atividades ligadas à cultura, ao desporto e à natureza. Se excluirmos as vertentes marítima e aérea, são 76 as agências lisboetas registadas, que oferecem os seus serviços em terra, entre as quais 32 surgiram entre 2002 e 2010, numa média de quatro novas empresas por ano. Só em 2011, apareceram 18, e, em 2012, 26.
As razões deste boom podem estar escondidas na própria crise e no desemprego, que tem afetado sobretudo jovens licenciados como Raquel e Inês. Mas também se podem dever ao decreto-lei n.º 108/2009, de 15 de maio, que facilitou o processo de constituição de agências de animação turística, ao abrigo do programa SIMPLEX. Com esta lei, foi eliminada a exigência de capital social mínimo, de modo a estimular o investimento privado e o desenvolvimento da atividade turística. No entanto, se esta medida veio simplificar a constituição de novas empresas, estas não deixaram de estar sujeitas ao pagamento de uma taxa única de registo no RNAAT que é de 950€ para as microempresas e de 1500€ para as restantes. Para Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, o facto de não precisarem de capital social para lançarem a sua empresa «foi um doce, porque permitiu reencaminhar este dinheiro para outras necessidades da empresa como o seu registo no Turismo de Portugal, para não falar de todos os seguros exigidos», explica Inês.
 Em Lisboa, a animação turística inclui também uma variadíssima oferta de experiências onde os clientes são literalmente conduzidos (ou se conduzem a si próprios) pela geografia da cidade. Hoje em dia é possível conhecer a capital utilizando, além do tradicional autocarro de sightseeing, vários tipos de transporte: jeep, side-cars, veículos elétricos com GPS, segway, bicicleta, tuk-tuk. Mas, outra das novidades, que parece ser uma tendência relativamente recente, é o turismo pedestre, com preços mais acessíveis e uma grande diversidade de percursos temáticos pelo centro histórico de Lisboa.
 Raquel Policarpo e Inês Ribeiro aproveitaram a sua formação em História, variante de Arqueologia, para apostarem nessa área: «A nossa originalidade é o facto de estarmos dedicadas ao turismo arqueológico», explica Inês. Durante meses, dedicaram-se de alma e coração ao negócio, preparando roteiros, estudando itinerários e as narrativas que os compõem. Em Lisboa, aprenderam caminhos desconhecidos, habituaram os músculos das pernas às colinas íngremes, com o objetivo de contar histórias, acrescentando-lhes sempre uma boa dose de arqueologia. «Tem sido um grande desafio», garante Raquel, que, sentada no miradouro da Graça, observa o lado ocidental da cidade como se vislumbrasse a maior aventura da sua vida.

Caminhar através da história
José Antunes, de 34 anos, termina o seu percurso de duas horas em frente ao Teatro Nacional D. Maria II, no Rossio. Guiou cerca de vinte pessoas através da cidade setecentista, reconstituindo o Terramoto de 1755 e as principais medidas impostas pelo Marquês de Pombal, durante a reconstrução de Lisboa. É um tema que atrai sempre muitos turistas, quer estrangeiros quer nacionais. José é um dos rostos da empresa Lisbon Walker, uma das mais antigas empresas neste panorama de animação turística, em Lisboa, no ativo desde novembro de 2005.
José e os seus sócios surgiram num momento em que a concorrência era quase nula. Inspiraram-se nos Itinerários Temáticos da Câmara Municipal de Lisboa (CML), promovidos pela olisipógrafa Gabriela Carvalho, e assim deram os primeiros passos numa jornada que os tem catapultado para o reconhecimento dos roteiros turísticos internacionais. «A ideia surgiu porque achámos que também faltava uma coisa deste género em Lisboa», explica José Antunes, licenciado em História Moderna e Contemporânea, mas também com formação em Gestão Cultural.
Criaram vários percursos temáticos, cujo objetivo principal seria dar a conhecer as histórias de Lisboa, desde tempos remotos até à sua contemporaneidade. «Fazemos semanalmente passeios em inglês e português, em que as pessoas não precisam de reservar. Basta aparecer», esclarece o sócio fundador da Lisbon Walker. Este tem sido um trunfo para empresas deste tipo, até porque muitos turistas, sobretudo estrangeiros, têm conhecimento da agência no posto de turismo do Terreiro do Paço. Sem precisar de efetuar reserva, é ali mesmo, a escassos metros, o ponto de encontro onde deverão reunir-se com o grupo, que se junta à volta de um guia de mochila cor-de-laranja às costas. O pagamento é feito na hora.

Um bilhete para se viajar no tempo custa, em média, 10 euros. Mas a Lisbon Walker, à semelhança de outras empresas congéneres, não recebe esse montante por inteiro: «Vamos imaginar que eu hoje vendi 10 bilhetes a 10 euros cada um. De cada um desses bilhetes, saem logo, à cabeça, 2,30€ de IVA. Isto é uma coisa gravíssima», explica José Antunes. «Até porque no que diz respeito ao poder de compra dos portugueses que nos procuram eu não noto assim uma descida tão visível que me pudesse preocupar tanto, como por exemplo este problema dos impostos.»
A concorrência não lhe tira o sono. Lisboa tem crescido imenso como destino turístico, na opinião do empresário. «Têm aparecido muitos outros negócios, os tuk-tuk, os carrinhos elétricos, e por aí. São concorrência, mas as pessoas podem querer fazer um passeio connosco, e também ir andar de segway», informa o empresário.
Além dos tradicionais passeios a pé pelo centro histórico de Lisboa, a Lisbon Walker também organiza atividades lúdicas como peddy papers, caças ao tesouro e batalhas navais para empresas e grupos organizados. Esta é uma forma divertida e original de aproveitar os recursos disponíveis, e, em resultado dessas atividades, são oferecidos aos participantes vouchers para passeios a pé, como o que José acabou de guiar. «As pessoas depois não vêm sozinhas fazer o passeio. E já que gostaram do jogo, também podem gostar do passeio a pé.»

Do outro lado da barricada
Isabel Correia, de 40 anos, membro da direção da Associação dos Guias-Intérpretes e dos Correios de Turismo (AGIC), senta-se com um descafeinado à frente e uma fatia de bolo de chocolate, que reserva para o fim. De casaco vermelho e cabelo apanhado, esboça um sorriso contido, até porque a história que tem para contar a preocupa a si e a centenas de outros colegas seus.
A instituição, da qual faz parte, foi criada em 2004, com o objetivo de representar os interesses dos guias-intérpretes junto das entidades oficiais, mas também funciona como um importante intermediário entre o cliente-turista e os guias, que são trabalhadores independentes. São à volta de 100 os profissionais associados da AGIC, entre os cerca de mil que existem em todo o país.
Isabel retira do interior da sua mala um caderno de apontamentos que abre em página certeira. Indica o gatafunho no topo da folha como a razão do seu grande desassossego. É a referência ao decreto publicado em 27 de julho de 2011, dia a partir do qual a vida de Isabel e a de muitos outros colegas mudou. A profissão de guia-intérprete estava agora liberalizada. Ou seja, qualquer pessoa, quer fosse licenciada ou não, podia assumir as funções que só aos guias-intérpretes cabia desempenhar. Em termos práticos, as escolas de turismo ficaram proibidas de realizar os exames finais da licenciatura (que habilitavam para a profissão de guia-intérprete) e a carteira profissional deixou de existir.
Com a liberalização instalada, agora a grande preocupação é a concorrência desenfreada até da parte de pessoas singulares: «Muitos, não sabendo sequer como são os honorários que um guia cobra, podem simplesmente pedir metade e isso prejudicar de imediato os guias», explica Isabel.
A acrescer a esta situação está o aumento das agências de animação turística. A concorrência que tem vindo a crescer exponencialmente nos últimos anos, sobretudo em Lisboa, onde está sediada a maioria destes profissionais. Cada empresa de animação turística que abre as suas portas está a potenciar um desvio de clientela, que era, até há pouco tempo, dominada pela quase exclusividade dos guias-intérpretes, que tinham uma lista de monumentos e cidades onde só eles poderiam realizar visitas. Agora, qualquer pessoa, desde que constitua uma empresa de animação turística, pode guiar uma visita a qualquer monumento português.
Isabel Correia admite que a Lisbon Walker, fundada em 2005, é uma empresa que lhe faz concorrência, mas nunca esteve ilegal, até porque os passeios pedestres no centro histórico de Lisboa não constavam na lista de exclusividade do guia-intérprete, até 2011. «A concorrência é salutar. Se um historiador, um historiador da arte ou um arquiteto fizerem visitas de forma especializada, fazem muito bem. Aquilo com que nós não concordamos é que pessoas sem formação de coisa nenhuma, desde que constituam uma empresa, possam fazer visitas», desabafa. «O desafio é bom, temos é de ter regras.»
O que Isabel e a AGIC defendem é que para estas empresas poderem realizar passeios guiados, deveriam submeter-se a um exame, que ateste a qualidade dos seus conhecimentos, de modo a estarem todos em pé de igualdade. Duvida que muitos destes novos guias tenham a preparação necessária para satisfazerem convenientemente os turistas, até porque já não é a primeira vez que encostou o ouvido a grupos guiados que passavam por si, em Lisboa. «Será que estas pessoas que estão no terreno falam espanhol ou portunhol», questiona.
Apesar de tudo, as consequências da nova lei e do aumento abrupto de várias novas empresas de animação turística, sobretudo na região da Grande Lisboa, ainda não se expressam em números, até porque os guias-intérpretes, como trabalhadores independentes, só fazem as suas contas no fim do ano: «Varia de guia para guia, mas sentimos que há menos procura», afirma a representante da AGIC.
Espaço para todos
Isabel Correia acredita que esta é uma fase passageira para os guias-intérpretes. A vida para eles nunca foi fácil, até porque foram formados para se tornarem trabalhadores independentes. Nos meses da época alta, é a máxima da formiga que dita as regras para estes profissionais: há que trabalhar com afinco, até porque não se sabe o dia de amanhã. Esta é a vida de um guia-intérprete e Isabel não fugiu à regra. Esperam-lhe semanas sem qualquer tipo de atividade profissional. «Há de facto uma época alta, muito extenuante, mas também há uma época baixa em que podemos passar semanas, um mês, ou dois, ou três sem um único dia de trabalho. É um período de cerca de quatro meses em que os rendimentos auferidos podem ser mínimos», esclarece Isabel Correia.
Raquel Policarpo e Inês Ribeiro, da Time Travellers, não são guias-intérpretes mas sabem que o inverno e a crise não favorecem o seu negócio. Têm apostado sobretudo no turismo nacional, que é mais estável que o estrangeiro, em época baixa. Até porque há cada vez mais portugueses a procurar este tipo de serviços. O Facebook e a página na Internet ajudam-nas nessa divulgação interna.
De acordo com as empresárias, os lisboetas começam a descobrir a riqueza histórica da sua cidade e não se importam de pagar por isso. Muitos ficam surpreendidos com atalhos que desembocam em locais completamente inesperados: «Temos sempre muitos lisboetas que nunca visitaram a Feira da Ladra ou que não conhecem bem os recantos de Alfama», explica Raquel Policarpo.
Isabel Correia reconhece que, embora a AGIC não seja muito procurada por turistas nacionais, este é um mercado emergente. «É um fenómeno muito recente. Em Lisboa, as pessoas estão a descobrir a sua própria cidade.» Já José Antunes, da Lisbon Walker, tem muitos mais turistas estrangeiros a fazer os seus percursos. «O nosso maior mercado é o anglo-saxónico, sobretudo o americano, que vem para a Europa à procura de História», revela José. Mas também usam o Facebook para fidelizar a clientela da Grande Lisboa.
Sete anos depois, a Lisbon Walker consolidou-se no mercado e serve, ela própria, como uma inspiração para agências como a recente Time Travellers. José Antunes confirma a estabilidade financeira da empresa, embora o crescimento não tenha sido fácil: «Eu consigo viver da Lisbon Walker, mas, claro, quando isto começou houve um período de estabilização que ainda demorou um bocadinho». Para Raquel Policarpo e Inês Ribeiro, ainda é cedo para sentirem que a Time Travellers veio para ficar: «Porque uma empresa não se faz num ano, sucesso em termos de lucro ainda não temos», diz Inês.
Para Isabel Correia e para todos os guias-intérpretes portugueses, novos caminhos se abrem. Nada os impede de tomarem as rédeas do seu próprio destino, face à concorrência instalada. «Há colegas guias que se estão a organizar em empresas, mas não é a maioria.»