Em tempos de crise,
estão a surgir cada vez mais empresas de animação turística em Lisboa. Os
caminhos da liberalização do setor turístico estão a promover uns, mas também a
preocupar outros: os guias-intérpretes, que já se queixam da diminuição de
atividade
As faces dos turistas lisboetas estão avermelhadas do esforço da subida, duas horas e meia depois da partida na Casa dos Bicos. O sol espreita no miradouro da Graça e o grupo observa o rio e o casario de Lisboa enquanto recupera o fôlego. As guias do passeio, Raquel e Inês, ambas de t-shirt cor-de-laranja e casaco de malha castanho, despedem-se, com um sorriso. «Esperamos que tenham gostado», diz Raquel.
O
grupo agradece e parte. Foi mais um passeio da Time Travellers, uma agência de
animação turística que surgiu em Lisboa, em junho de 2011. Raquel Policarpo e
Inês Ribeiro, ambas de 28 anos e arqueólogas de profissão, estão desde janeiro
de 2012 a conduzir turistas através do tempo. Deram o passo necessário quando o
cenário do emprego em Portugal as começava a preocupar: «Desde que vi uma
empresa de turismo arqueológico, em Inglaterra, achei que era uma coisa que se
podia fazer em Portugal, e quanto mais conhecia o nosso património, mais achava
que podia dar resultado», recorda Raquel.
A
arqueóloga recebeu a divulgação de um programa de apoio ao empreendedorismo
feminino, o “Mulher Mais”, e candidatou-se logo, corria o ano de 2010. Percebeu
depois que o projeto que tinha em mãos precisava de mais uma pessoa e, por
isso, surgiu Inês Ribeiro, antiga colega de faculdade e amiga de Raquel.
Acabaram por fazer a formação juntas. Tempos depois, surgia a empresa.
O
exemplo da Time Travellers é apenas um entre os vários exemplos de agências de
animação turística, que surgiram em Lisboa, nos últimos anos. O Registo
Nacional de Agentes de Animação Turística (RNAAT), organismo adstrito ao
Turismo de Portugal, criado em 2009, tem inscritas, na capital, 92 empresas que
oferecem serviços diversificados em terra, na água ou no ar (designações
próprias utilizadas pelo RNAAT). São negócios que se alimentam do turismo
nacional e estrangeiro e que exploram atividades ligadas à cultura, ao desporto
e à natureza. Se excluirmos as vertentes marítima e aérea, são 76 as agências lisboetas
registadas, que oferecem os seus serviços em terra, entre as quais 32 surgiram
entre 2002 e 2010, numa média de quatro novas empresas por ano. Só em 2011,
apareceram 18, e, em 2012, 26.
As razões deste boom podem estar escondidas na própria
crise e no desemprego, que tem afetado sobretudo jovens licenciados como Raquel
e Inês. Mas também se podem dever ao decreto-lei n.º 108/2009, de 15 de maio, que
facilitou o processo de constituição de agências de animação turística, ao
abrigo do programa SIMPLEX. Com esta lei, foi eliminada a exigência de capital
social mínimo, de modo a estimular o investimento privado e o desenvolvimento
da atividade turística. No entanto, se esta medida veio simplificar a
constituição de novas empresas, estas não deixaram de estar sujeitas ao
pagamento de uma taxa única de registo no RNAAT que é de 950€ para as
microempresas e de 1500€ para as restantes. Para Inês Ribeiro e Raquel
Policarpo, o facto de não precisarem de capital social para lançarem a sua
empresa «foi um doce, porque permitiu reencaminhar este dinheiro para outras
necessidades da empresa como o seu registo no Turismo de Portugal, para não
falar de todos os seguros exigidos», explica Inês.
Caminhar através da história
José
Antunes, de 34 anos, termina o seu percurso de duas horas em frente ao Teatro
Nacional D. Maria II, no Rossio. Guiou cerca de vinte pessoas através da cidade
setecentista, reconstituindo o Terramoto de 1755 e as principais medidas
impostas pelo Marquês de Pombal, durante a reconstrução de Lisboa. É um tema
que atrai sempre muitos turistas, quer estrangeiros quer nacionais. José é um
dos rostos da empresa Lisbon Walker, uma das mais antigas empresas neste
panorama de animação turística, em Lisboa, no ativo desde novembro de 2005.
José
e os seus sócios surgiram num momento em que a concorrência era quase nula.
Inspiraram-se nos Itinerários Temáticos da Câmara Municipal de Lisboa (CML),
promovidos pela olisipógrafa Gabriela Carvalho, e assim deram os primeiros
passos numa jornada que os tem catapultado para o reconhecimento dos roteiros
turísticos internacionais. «A ideia surgiu porque achámos que também faltava
uma coisa deste género em Lisboa», explica José Antunes, licenciado em História
Moderna e Contemporânea, mas também com formação em Gestão Cultural.
Criaram
vários percursos temáticos, cujo objetivo principal seria dar a conhecer as
histórias de Lisboa, desde tempos remotos até à sua contemporaneidade. «Fazemos
semanalmente passeios em inglês e português, em que as pessoas não precisam de
reservar. Basta aparecer», esclarece o sócio fundador da Lisbon Walker. Este
tem sido um trunfo para empresas deste tipo, até porque muitos turistas,
sobretudo estrangeiros, têm conhecimento da agência no posto de turismo do Terreiro
do Paço. Sem precisar de efetuar reserva, é ali mesmo, a escassos metros, o
ponto de encontro onde deverão reunir-se com o grupo, que se junta à volta de
um guia de mochila cor-de-laranja às costas. O pagamento é feito na hora.
Um
bilhete para se viajar no tempo custa, em média, 10 euros. Mas a Lisbon Walker,
à semelhança de outras empresas congéneres, não recebe esse montante por
inteiro: «Vamos imaginar que eu hoje vendi 10 bilhetes a 10 euros cada um. De
cada um desses bilhetes, saem logo, à cabeça, 2,30€ de IVA. Isto é uma coisa
gravíssima», explica José Antunes. «Até porque no que diz respeito ao poder de
compra dos portugueses que nos procuram eu não noto assim uma descida tão
visível que me pudesse preocupar tanto, como por exemplo este problema dos
impostos.»
A
concorrência não lhe tira o sono. Lisboa tem crescido imenso como destino
turístico, na opinião do empresário. «Têm aparecido muitos outros negócios, os tuk-tuk, os carrinhos elétricos, e por
aí. São concorrência, mas as pessoas podem querer fazer um passeio connosco, e
também ir andar de segway», informa o
empresário.
Além
dos tradicionais passeios a pé pelo centro histórico de Lisboa, a Lisbon Walker
também organiza atividades lúdicas como peddy papers, caças ao tesouro e
batalhas navais para empresas e grupos organizados. Esta é uma forma divertida
e original de aproveitar os recursos disponíveis, e, em resultado dessas
atividades, são oferecidos aos participantes vouchers para passeios a pé, como o que José acabou de guiar. «As
pessoas depois não vêm sozinhas fazer o passeio. E já que gostaram do jogo,
também podem gostar do passeio a pé.»
Do outro lado da barricada
Isabel
Correia, de 40 anos, membro da direção da Associação dos Guias-Intérpretes e
dos Correios de Turismo (AGIC), senta-se com um descafeinado à frente e uma
fatia de bolo de chocolate, que reserva para o fim. De casaco vermelho e cabelo
apanhado, esboça um sorriso contido, até porque a história que tem para contar
a preocupa a si e a centenas de outros colegas seus.
A
instituição, da qual faz parte, foi criada em 2004, com o objetivo de
representar os interesses dos guias-intérpretes junto das entidades oficiais,
mas também funciona como um importante intermediário entre o cliente-turista e
os guias, que são trabalhadores independentes. São à volta de 100 os
profissionais associados da AGIC, entre os cerca de mil que existem em todo o
país.
Isabel
retira do interior da sua mala um caderno de apontamentos que abre em página
certeira. Indica o gatafunho no topo da folha como a razão do seu grande
desassossego. É a referência ao decreto publicado em 27 de julho de 2011, dia a
partir do qual a vida de Isabel e a de muitos outros colegas mudou. A profissão
de guia-intérprete estava agora liberalizada. Ou seja, qualquer pessoa, quer
fosse licenciada ou não, podia assumir as funções que só aos guias-intérpretes
cabia desempenhar. Em termos práticos, as escolas de turismo ficaram proibidas
de realizar os exames finais da licenciatura (que habilitavam para a profissão
de guia-intérprete) e a carteira profissional deixou de existir.
Com
a liberalização instalada, agora a grande preocupação é a concorrência
desenfreada até da parte de pessoas singulares: «Muitos, não sabendo sequer
como são os honorários que um guia cobra, podem simplesmente pedir metade e
isso prejudicar de imediato os guias», explica Isabel.
A
acrescer a esta situação está o aumento das agências de animação turística. A concorrência
que tem vindo a crescer exponencialmente nos últimos anos, sobretudo em Lisboa,
onde está sediada a maioria destes profissionais. Cada empresa de animação
turística que abre as suas portas está a potenciar um desvio de clientela, que
era, até há pouco tempo, dominada pela quase exclusividade dos
guias-intérpretes, que tinham uma lista de monumentos e cidades onde só eles
poderiam realizar visitas. Agora, qualquer pessoa, desde que constitua uma
empresa de animação turística, pode guiar uma visita a qualquer monumento
português.
Isabel
Correia admite que a Lisbon Walker, fundada em 2005, é uma empresa que lhe faz
concorrência, mas nunca esteve ilegal, até porque os passeios pedestres no
centro histórico de Lisboa não constavam na lista de exclusividade do
guia-intérprete, até 2011. «A concorrência é salutar. Se um historiador, um
historiador da arte ou um arquiteto fizerem visitas de forma especializada,
fazem muito bem. Aquilo com que nós não concordamos é que pessoas sem formação
de coisa nenhuma, desde que constituam uma empresa, possam fazer visitas»,
desabafa. «O desafio é bom, temos é de ter regras.»
O
que Isabel e a AGIC defendem é que para estas empresas poderem realizar
passeios guiados, deveriam submeter-se a um exame, que ateste a qualidade dos
seus conhecimentos, de modo a estarem todos em pé de igualdade. Duvida que
muitos destes novos guias tenham a preparação necessária para satisfazerem
convenientemente os turistas, até porque já não é a primeira vez que encostou o
ouvido a grupos guiados que passavam por si, em Lisboa. «Será que estas pessoas
que estão no terreno falam espanhol ou portunhol»,
questiona.
Apesar
de tudo, as consequências da nova lei e do aumento abrupto de várias novas
empresas de animação turística, sobretudo na região da Grande Lisboa, ainda não
se expressam em números, até porque os guias-intérpretes, como trabalhadores
independentes, só fazem as suas contas no fim do ano: «Varia de guia para guia,
mas sentimos que há menos procura», afirma a representante da AGIC.
Espaço para todos
Isabel
Correia acredita que esta é uma fase passageira para os guias-intérpretes. A
vida para eles nunca foi fácil, até porque foram formados para se tornarem
trabalhadores independentes. Nos meses da época alta, é a máxima da formiga que
dita as regras para estes profissionais: há que trabalhar com afinco, até
porque não se sabe o dia de amanhã. Esta é a vida de um guia-intérprete e
Isabel não fugiu à regra. Esperam-lhe semanas sem qualquer tipo de atividade
profissional. «Há de facto uma época alta, muito extenuante, mas também há uma
época baixa em que podemos passar semanas, um mês, ou dois, ou três sem um
único dia de trabalho. É um período de cerca de quatro meses em que os
rendimentos auferidos podem ser mínimos», esclarece Isabel Correia.
Raquel
Policarpo e Inês Ribeiro, da Time Travellers, não são guias-intérpretes mas
sabem que o inverno e a crise não favorecem o seu negócio. Têm apostado
sobretudo no turismo nacional, que é mais estável que o estrangeiro, em época
baixa. Até porque há cada vez mais portugueses a procurar este tipo de
serviços. O Facebook e a página na Internet ajudam-nas nessa divulgação
interna.
De
acordo com as empresárias, os lisboetas começam a descobrir a riqueza histórica
da sua cidade e não se importam de pagar por isso. Muitos ficam surpreendidos
com atalhos que desembocam em locais completamente inesperados: «Temos sempre
muitos lisboetas que nunca visitaram a Feira da Ladra ou que não conhecem bem
os recantos de Alfama», explica Raquel Policarpo.
Isabel
Correia reconhece que, embora a AGIC não seja muito procurada por turistas
nacionais, este é um mercado emergente. «É um fenómeno muito recente. Em
Lisboa, as pessoas estão a descobrir a sua própria cidade.» Já José Antunes, da
Lisbon Walker, tem muitos mais turistas estrangeiros a fazer os seus percursos.
«O nosso maior mercado é o anglo-saxónico, sobretudo o americano, que vem para
a Europa à procura de História», revela José. Mas também usam o Facebook para
fidelizar a clientela da Grande Lisboa.
Sete
anos depois, a Lisbon Walker consolidou-se no mercado e serve, ela própria,
como uma inspiração para agências como a recente Time Travellers. José Antunes confirma
a estabilidade financeira da empresa, embora o crescimento não tenha sido
fácil: «Eu consigo viver da Lisbon Walker, mas, claro, quando isto começou
houve um período de estabilização que ainda demorou um bocadinho». Para Raquel
Policarpo e Inês Ribeiro, ainda é cedo para sentirem que a Time Travellers veio
para ficar: «Porque uma empresa não se faz num ano, sucesso em termos de lucro
ainda não temos», diz Inês.
Para
Isabel Correia e para todos os guias-intérpretes portugueses, novos caminhos se
abrem. Nada os impede de tomarem as rédeas do seu próprio destino, face à
concorrência instalada. «Há colegas guias que se estão a organizar em empresas,
mas não é a maioria.»