segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Passear pelas histórias de Lisboa

Reportagem publicada no site de notícias "Onde Ir", a 16 de abril de 2013.
http://ondeir.com.pt/2013/04/passear-pelas-historias-de-lisboa/

Existem cada vez mais agentes de “viagens no tempo” na capital, prontos para encaminhar os próprios lisboetas num passeio que alia a descoberta da História e a saudável prática da caminhada. Esta até podia ser uma reportagem sobre um novo desporto chamado “Lisbon Walker”.

De rabo-de-cavalo, pele bronzeada e óculos espelhados, José Antunes, de 33 anos, lembra mais um explorador ou alpinista do que propriamente um jovem historiador que ganha a sua vida a fazer passeios e a contar histórias. «O meu nome é Zé e vou ser o vosso guia», diz, apresentando-se, à esquina da Praça do Comércio com a Rua do Arsenal. O grupo é composto por mais de vinte pessoas, todas calçando ténis confortáveis. A primeira etapa do passeio, que tem como tema o Terramoto de 1755, começa ali mesmo, entre a sombra e a exposição ao sol, conforme o gosto do “passeante”.
Afinal o “guia Zé”, o rapaz do rabo-de-cavalo, é um dos fundadores da empresa de animação turística Lisbon Walker, no mercado desde novembro de 2005. Aliás, terá sido precisamente no dia 1 de novembro desse ano, quando se comemoravam os 250 anos do terramoto, que a Lisbon Walker deu os seus primeiros passos. Na época, poucas eram as empresas que faziam este tipo de passeios. Num mercado que era essencialmente dominado por guias-intérpretes que não viam com bons olhos a intromissão de outras pessoas no turismo, José Antunes, com formação em História e em Gestão Cultural, e os seus sócios José Varandas, de Engenharia, e Rita Macedo, de Comunicação (hoje é Ana Varandas a terceira sócia e não Rita Macedo) fizeram orelhas moucas aos “velhos do Restelo” e lançaram-se num projeto que viria a ser referenciado em quase todos os roteiros sobre Lisboa.

Mergulho na História

De volta à Praça do Comércio, José retira uma pasta com alguma documentação de apoio: plantas, mapas, fotografias de maquetes. E começa pelo princípio, o da evolução de Lisboa. Retrata um cenário, que poucos saberão, sobre a cidade pré-medieval: o esteiro do rio, que avançava na direção do Rossio e que dividia a Baixa, que hoje conhecemos, ao meio. Desfila, com alguma rapidez, a passagem por Lisboa de fenícios, romanos, bárbaros, muçulmanos e cristãos. Afinal é a história de Portugal que nos interessa nesta tarde. Mais especificamente a do século XVIII.
À medida que os passeantes seguem José Antunes pela Baixa Pombalina, as narrativas vão-se acumulando. Repara-se em pormenores da arquitetura da reconstrução, mas também do século XIX e XX. Na Praça do Município, observa-se uma empena no edifício que terá sido outrora a Ópera do Tejo, uma sala de espetáculos com 600 lugares, de meter inveja a muitos reinos europeus, inaugurada em abril de 1755. Meses depois, o seu destino haveria de terminar em escombros.
Ao contrário do que se esperaria de um “guia”, José foge à ideia de contar sempre as mesmas histórias. É um comunicador fluente, contextualiza, teoriza, dá até a sua opinião pessoal. Uma passeante deixa escapar uma interjeição, quase em surdina: «Nem 28 anos deve ter e já sabe tanto». E não é apenas uma questão de sabedoria mas sim de preparação. É José quem escreve a maior parte dos guiões dos passeios, mas exige aos seus colaboradores que se documentem com outras leituras: «Que ninguém se lembre de só ler aquilo. Eu não quero que as pessoas venham aqui repetir as coisas como se fossem uma cassete», diz, mais tarde.
O Terramoto é contado de diferentes ângulos. Abalos, tsunami, incêndios e a confusão gerada por uma das maiores catástrofes naturais da História; a ação do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo e as medidas tomadas no próprio dia 1 de novembro e nos meses e anos que se seguiram. Lisboa passa a ser o principal estudo de caso para a emergente disciplina da Sismologia, ainda no século XVIII. Está-se em plena época das Luzes e discute-se hoje, aqui, numa das ruas reerguidas após o terramoto, o papel desempenhado pela Ciência num tempo em que era comum associar-se este tipo de fenómenos a castigos divinos. E ainda bem que o Iluminismo ajudou Eugénio dos Santos e Manuel da Maia a reconstruir uma cidade moderna, à luz da razão. Se assim não tivesse sido, teria a Baixa resistido tantos anos?
Observam-se as montras do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, pertencente ao grupo Millenium-BCP. Por ser domingo, está encerrado, mas, espreitando, dá para ver um dos locais arqueológicos mais interessantes de Lisboa, onde foram encontrados vestígios da cidade fenícia e romana, mas também algumas das fundações da Baixa Pombalina. «Já se sabe que abrir um buraco na Baixa é meio caminho andado para ter problemas», brinca José, relembrando a descoberta feita no início dos anos 90 pela instituição bancária, que decidiu promover e musealizar os vestígios encontrados. É lá que também é possível ver as famosas estacas de pinho verde que se alimentam do lençol freático que ainda vai persistindo no subterrâneo daquela zona. A maior parte dos passeantes admite não conhecer o local e promete regressar, sobretudo tendo em conta que a entrada é gratuita.

Apostar no público lisboeta
Embora a Lisbon Walker trabalhe mais com turistas estrangeiros, durante a semana, é o público local que mais tem vindo a demonstrar interesse pela história de Lisboa. E essa é outra vertente da empresa, ou seja, despertar nos próprios lisboetas a curiosidade de conhecer com mais profundidade a cidade que os acolhe. Mas não é qualquer pessoa que paga para passear pela História. «Ninguém vem fazer um passeio a pé se não tiver um mínimo de interesse pela cultura», explica José. A adesão dos portugueses não tem diminuído e até se adensa em determinados percursos: «Muitas pessoas vêm fazer o passeio dos espiões, por exemplo, porque lhes desperta a curiosidade. Já tive pessoas a darem-me indicações de bibliografia e a enviarem-me livros do estrangeiro», acrescenta o empresário.
As escolas são outro mercado para a Lisbon Walker. «Fazemos muitos passeios para escolas, do 1.º ciclo à faculdade. Temos passeios muito específicos, por exemplo sobre a crise de 1383-85», exemplifica o fundador da empresa. E prossegue: «Não queremos fazer aulas nenhumas, as aulas são feitas nas escolas, mas o potencial é este, num contexto de rua, o aluno tem possibilidade de ganhar memórias visuais que o vão ajudar a consolidar os conteúdos que aprende na aula».
Além dos passeios a pé, fazem também atividades com jogos para empresas e grupos organizados: «É muito giro, inscrevem-se para vir fazer uma batalha naval ou um peddy paper pela cidade de Lisboa», esclarece José. «É uma maneira de rentabilizar e explorar os conteúdos que aplicamos nos passeios de uma maneira diferente, e portanto também tem uma parte criativa engraçada», refere.

O melhor para o fim
O passeio continua na direção da Praça da Figueira. Mira-se o Castelo de São Jorge, cujas muralhas foram reconstruídas durante o Estado Novo de Salazar, conjetura-se a origem do topónimo Figueira, relembra-se o Hospital Real de Todos-os-Santos, destacando-se as suas enfermarias mais especiais, a ala de psiquiatria da época, ou Casa dos Doidos, e a ala das Doenças Sexualmente Transmissíveis: «Eles iam para lá para morrer, mas ao menos morriam com conforto espiritual», brinca José.
A Igreja de São Domingos ficou guardada para o fim. Ela é um segredo muito bem escondido da maioria dos lisboetas que apenas passa pela Baixa para fazer compras: «Prometo uma experiência inolvidável porque é uma igreja como nunca viram», garante José Antunes, habituado a observar as reações dos seus passeantes, uma vez transposta a porta da igreja. E de facto, uma vez mais se confirma. A maioria destes participantes nunca ali tinha estado e as reações são diversas permeando o espanto e o horror. Quanto à razão, fica em aberto, até porque o segredo deve permanecer na vontade do leitor em conhecer a dita igreja, paredes meias com o Rossio. A estória, essa, é um misto de maldição e massacre, pois foi aqui que, em 1506, se deu um dos acontecimentos mais negros da História de Portugal e que foi responsável pelo assassínio de milhares de cristãos-novos, às mãos de uma população instada pelo discurso inflamado e antijudaico de um frade de S. Domingos.
A igreja volta a ser referida quando associada ao terramoto, uma vez que se sabe ter sido uma das principais causadoras dos incêndios que lavraram durante dias, na já devastada cidade.
As despedidas fazem-se no Rossio. Em pouco mais de duas horas, havia-se desfilado por mais de dois séculos e meio de História. E no entanto adivinha-se nos rostos dos passeantes, que se despedem “até uma próxima”, a ideia de que soube a pouco, passou depressa. Querem mais.
Baralho de Cartas-Passeio “Lisbon Walker”
Para quem quer caminhar de forma autónoma, a Lisbon Walker colocou à venda desde 2011 um baralho de cartas-passeio, com sugestões para as pessoas fazerem a pé, dentro e na periferia de Lisboa.
Sugestões de passeios da Lisbon Walker
Cidade Velha
O Terramoto de 1755
Lisboa 7ª Colina
Lisboa Lendas e Mistérios
Lisboa Cidade do Espiões
A Colina do Castelo
Lisboa Sensorial
Programas para grupos escolares
Peddy Papers e Caças ao Tesouro