A
respeito de uma entrevista de Richard Zimmler e Alexandre Quintanilha, este
domingo, ao suplemento 2 do Público, fiquei a remoer numa frase dita pelo
cientista Quintanilha: «É muito forte em mim esta repulsa pelas camisolas. (…) O
que é que eu sou? Tenho uma mãe alemã, um pai açoriano, nasci em Moçambique,
vivi na África do Sul muitos anos, estive na Califórnia, estou em Portugal,
tenho nacionalidade portuguesa e americana. Não me faz confusão nenhuma não
saber identificar-me».
Ora
de tal forma remoí nesta questão, até porque as questões de identidade me
preocupam e chamam a atenção, e dei por mim a afirmar que sou lisboeta. Essa é uma
verdade incontestável. Sou lisboeta porque nasci no Hospital da Estefânia;
porque vivi no Chiado até aos 18 anos, e depois em Campolide e em Benfica;
porque estudei nas escolas já não existentes da Baixa e arredores e mais tarde
na Faculdade de Letras de Lisboa; porque trabalhei muitas vezes em Lisboa;
porque calcorreio as suas ruas históricas com pé leve; porque aprendi a acordar
de manhã e a respirar o brilho e a branquidão da minha cidade ribeirinha.
Não
sou de mais lado nenhum. Não me identifico com outras cidades do país, apenas
as admiro. Sonho com o dia em que parto com uma mala de cartão à descoberta do
mundo, do mais mediterrânico possível ao longínquo mais profundo. E sonho,
nesse sonho, regressar, com a mala de cartão mais pesada, à minha cidade, quer
ela esteja embrulhada num manto de névoa e chuva quer esteja de braços
estendidos ao sol, esperando por mim. Esse é o laço. Essa é a minha identidade.
E essa, parece-me, é a mesma espinha dorsal que os portugueses tiveram a partir
de 1415, como um vício de quem precisa urgentemente de viajar, conquistar,
conhecer, mas sempre com o fito de regressar à sua mãe, ao seu berço, à sua
origem.
Os
meus pais não nasceram em Lisboa e conheceram-se em Paris. Vivem e trabalham na
capital há cerca de 40 anos. Neste caso, não foi um ponto de partida, mas sim
de chegada. Lisboa recebeu-os de braços abertos, num ano que adivinhava já a
liberdade, e por isso, depois da cegonha parisiense ter feito seus negócios
ainda por terras francas, surgiu a minha irmã, fruto de um encontro entre duas
pessoas numa cidade distante. Nasceu em Lisboa, mas veio encomendada de Paris.
O que me parece ser mais chique do que uma pessoa que é encomendada e nasce
simplesmente em Lisboa. Mas nesse ponto, atrevo-me a dizer: Sou mais lisboeta!
A
História entranhou-se-me no corpo como peçonha há cerca de 20 anos e Lisboa é a
causa agonizante desse meu mal. E tudo começou quando, aborrecida, e sem
vontade nenhuma de fazer um trabalho chato para a disciplina de História, sobre
os Descobrimentos, a caneta começou a escarafunchar o papel à procura do cheiro
da canela, do brilho do ouro e do bulício dos marinheiros descarregando
mercadorias. Nascia a também muito lisboeta personagem que eu envergava sempre
que me apetecia embarcar numa deambulação criativa para fora dos meus afazeres
menores de estudante. Assim, viajando nos livros e nas histórias que comecei a
escrever, me afirmei, com unhas e dentes, uma lisboeta convicta e orgulhosa.
Com
o passar do tempo, a história desta personagem (cujo nome não vou referir
ainda, propositadamente) começou a alargar-se para lá das fronteiras de Lisboa
e de Portugal. Porquê? Eis a explicação: A cada vez mais insistente pergunta «Tens
família indiana?» começou a provocar uma certa comichão no meu Eu identitário e
a questionar a hipótese «E se eu tiver mesmo família indiana?». Isso
transformava toda a minha razão de ser lisboeta! Mas a dúvida persistia sempre.
O tom de pele e o facto de se desconhecer a identidade de um avô faziam-me ter
vontade de mais uma vez deambular num universo fantástico de aventuras, mas que
agora me transportavam para o Índico e para bordo de um navio quinhentista…
Agora
sim, posso revelar. Pelos quinze anos e porque me apeteceu mergulhar na
história de forma literária, criei a tal personagem. Precisava de algo que a
caracterizasse, que a fizesse estrangeira, de modo a ser conduzida pelas
personagens da época que eu inventava no papel. Se fosse uma simples escrava,
quem me ligaria importância e me explicaria as coisas que eu precisava de
escrever no trabalho de História? Sim, uma princesa! Mas uma princesa de calças
de ganga e ténis, como é óbvio. Porquê? Porque… vinha de um reino distante e
lá, as modas eram outras… De onde? Hmmm… De Deli! Não, nessa altura, já os
portugueses lá andavam e sabiam que eles não usavam calças de ganga. De…
Islamabad? Uii, nome muito comprido para ficar no ouvido. Mas espera, há aqui
no mapa um país perto da Índia que tem uma capital com um nome fixe: Kabul! Ya,
é isso mesmo, venho de Kabul, do longínquo reino do Afeganistão. Ficou. O nome
é giro e supostamente as moças afegãs serão parecidas com as indianas, pensei. É
só para a personagem, ninguém sabe onde fica, ninguém ouve falar de Kabul, em
1992.
Depois
disto, quando me surgia a pergunta «Tens família indiana?», respondia, rápida e
certeiramente: «Não, tenho família em Kabul, no Afeganistão». A resposta
convencia alguns colegas, mas não me convencia a mim. Até que em 1997, a Kabul
que havia em mim saiu do papel e veio ao meu encontro, numa manhã de primavera.
Agora já todos ouviam falar de Kabul, de talibãs e de burkas. Eu transformei-me
naquela rapariga morena e rechonchuda de calças de ganga, pronta a partir para
a aventura. E assim me descolei do papel e entrei num comboio onde percebi o
que era não ter identidade. Esse périplo que encetei, entre aventuras
arqueológicas e páginas escritas de histórias reais, fez-me mergulhar numa
profusão de rostos, paisagens, pronúncias e cheiros que, aos poucos, me
afastaram da minha confortável e identitária Lisboa. Ao regressar, eu vinha
sempre diferente. Seria mesmo de Kabul?
Surgiria
mais tarde, teria eu uns 22 anos, um encontro inesperado com um saudita no
Olivais Shopping. Ficou a olhar para mim, de forma intensa e grave. Perguntou-me
em inglês: «Are you from Saudi Arabia?». Não, claro que não, que disparate! E
confirma o que eu mais temia. Sou mesmo parecida com as mulheres sauditas.
Bolas! Mas isso já vem estragar outra vez a justificação imaginária das minhas
origens.
Até
que, aos 26, naquela que foi provavelmente uma das viagens menos escolhidas da
minha vida, por ser barata e ter variedade, me vi no Norte de África, entre
berberes e tunisinos. E foi nesse mergulho desconhecido que encontrei a outra
face de Lisboa, o outro lado do meu coração. Ali percebi que, vendo-me ao
espelho, eu era igual. Que desde criança sempre tive o hábito irritante de
lançar gritos estalidos com a língua no céu-da-boca, sem perceber porquê. Que
nas restantes viagens que faria a Marrocos, Turquia e Tunísia de novo, algo de
muito estranho me aproximava daquelas gentes. Foi nos olhares de homens e
mulheres tunisinos que encontrei uma espécie de reflexo. E eles olhavam-me não
como se olha para uma turista loura muito bonita, mas como quem olha para o seu
semelhante.
A
loucura pelas viagens tomou-me de assalto, embora de forma comedida, por não
ter uma bolsa recheada. E sempre que partia para a próxima aventura, fosse no
norte de África, no Mediterrâneo ou na Europa Central, eu era mais do que
lisboeta: era romana, europeia, mediterrânica, árabe, atlântica.
Mas
hoje, mesmo que continue presa entre definições – sou professora ou sou
jornalista? Sou historiadora ou sou escritora? – eu não consigo, cada vez mais,
identificar-me, vestir uma camisola apenas. É por isso, diz o Freud que há em
mim, que continuo, como a pseudo-arqueóloga que já fui, a escavar Lisboa à
procura de romanos, muçulmanos e gente que simplesmente gostava de viajar. E por
essa ordem de ideias, sou, incontestavelmente, uma convicta e orgulhosa
lisboeta.