segunda-feira, 12 de novembro de 2012

ADN cor de alface


A respeito de uma entrevista de Richard Zimmler e Alexandre Quintanilha, este domingo, ao suplemento 2 do Público, fiquei a remoer numa frase dita pelo cientista Quintanilha: «É muito forte em mim esta repulsa pelas camisolas. (…) O que é que eu sou? Tenho uma mãe alemã, um pai açoriano, nasci em Moçambique, vivi na África do Sul muitos anos, estive na Califórnia, estou em Portugal, tenho nacionalidade portuguesa e americana. Não me faz confusão nenhuma não saber identificar-me».
Ora de tal forma remoí nesta questão, até porque as questões de identidade me preocupam e chamam a atenção, e dei por mim a afirmar que sou lisboeta. Essa é uma verdade incontestável. Sou lisboeta porque nasci no Hospital da Estefânia; porque vivi no Chiado até aos 18 anos, e depois em Campolide e em Benfica; porque estudei nas escolas já não existentes da Baixa e arredores e mais tarde na Faculdade de Letras de Lisboa; porque trabalhei muitas vezes em Lisboa; porque calcorreio as suas ruas históricas com pé leve; porque aprendi a acordar de manhã e a respirar o brilho e a branquidão da minha cidade ribeirinha.
Não sou de mais lado nenhum. Não me identifico com outras cidades do país, apenas as admiro. Sonho com o dia em que parto com uma mala de cartão à descoberta do mundo, do mais mediterrânico possível ao longínquo mais profundo. E sonho, nesse sonho, regressar, com a mala de cartão mais pesada, à minha cidade, quer ela esteja embrulhada num manto de névoa e chuva quer esteja de braços estendidos ao sol, esperando por mim. Esse é o laço. Essa é a minha identidade. E essa, parece-me, é a mesma espinha dorsal que os portugueses tiveram a partir de 1415, como um vício de quem precisa urgentemente de viajar, conquistar, conhecer, mas sempre com o fito de regressar à sua mãe, ao seu berço, à sua origem.
Os meus pais não nasceram em Lisboa e conheceram-se em Paris. Vivem e trabalham na capital há cerca de 40 anos. Neste caso, não foi um ponto de partida, mas sim de chegada. Lisboa recebeu-os de braços abertos, num ano que adivinhava já a liberdade, e por isso, depois da cegonha parisiense ter feito seus negócios ainda por terras francas, surgiu a minha irmã, fruto de um encontro entre duas pessoas numa cidade distante. Nasceu em Lisboa, mas veio encomendada de Paris. O que me parece ser mais chique do que uma pessoa que é encomendada e nasce simplesmente em Lisboa. Mas nesse ponto, atrevo-me a dizer: Sou mais lisboeta!
A História entranhou-se-me no corpo como peçonha há cerca de 20 anos e Lisboa é a causa agonizante desse meu mal. E tudo começou quando, aborrecida, e sem vontade nenhuma de fazer um trabalho chato para a disciplina de História, sobre os Descobrimentos, a caneta começou a escarafunchar o papel à procura do cheiro da canela, do brilho do ouro e do bulício dos marinheiros descarregando mercadorias. Nascia a também muito lisboeta personagem que eu envergava sempre que me apetecia embarcar numa deambulação criativa para fora dos meus afazeres menores de estudante. Assim, viajando nos livros e nas histórias que comecei a escrever, me afirmei, com unhas e dentes, uma lisboeta convicta e orgulhosa.
Com o passar do tempo, a história desta personagem (cujo nome não vou referir ainda, propositadamente) começou a alargar-se para lá das fronteiras de Lisboa e de Portugal. Porquê? Eis a explicação: A cada vez mais insistente pergunta «Tens família indiana?» começou a provocar uma certa comichão no meu Eu identitário e a questionar a hipótese «E se eu tiver mesmo família indiana?». Isso transformava toda a minha razão de ser lisboeta! Mas a dúvida persistia sempre. O tom de pele e o facto de se desconhecer a identidade de um avô faziam-me ter vontade de mais uma vez deambular num universo fantástico de aventuras, mas que agora me transportavam para o Índico e para bordo de um navio quinhentista…
Agora sim, posso revelar. Pelos quinze anos e porque me apeteceu mergulhar na história de forma literária, criei a tal personagem. Precisava de algo que a caracterizasse, que a fizesse estrangeira, de modo a ser conduzida pelas personagens da época que eu inventava no papel. Se fosse uma simples escrava, quem me ligaria importância e me explicaria as coisas que eu precisava de escrever no trabalho de História? Sim, uma princesa! Mas uma princesa de calças de ganga e ténis, como é óbvio. Porquê? Porque… vinha de um reino distante e lá, as modas eram outras… De onde? Hmmm… De Deli! Não, nessa altura, já os portugueses lá andavam e sabiam que eles não usavam calças de ganga. De… Islamabad? Uii, nome muito comprido para ficar no ouvido. Mas espera, há aqui no mapa um país perto da Índia que tem uma capital com um nome fixe: Kabul! Ya, é isso mesmo, venho de Kabul, do longínquo reino do Afeganistão. Ficou. O nome é giro e supostamente as moças afegãs serão parecidas com as indianas, pensei. É só para a personagem, ninguém sabe onde fica, ninguém ouve falar de Kabul, em 1992.
Depois disto, quando me surgia a pergunta «Tens família indiana?», respondia, rápida e certeiramente: «Não, tenho família em Kabul, no Afeganistão». A resposta convencia alguns colegas, mas não me convencia a mim. Até que em 1997, a Kabul que havia em mim saiu do papel e veio ao meu encontro, numa manhã de primavera. Agora já todos ouviam falar de Kabul, de talibãs e de burkas. Eu transformei-me naquela rapariga morena e rechonchuda de calças de ganga, pronta a partir para a aventura. E assim me descolei do papel e entrei num comboio onde percebi o que era não ter identidade. Esse périplo que encetei, entre aventuras arqueológicas e páginas escritas de histórias reais, fez-me mergulhar numa profusão de rostos, paisagens, pronúncias e cheiros que, aos poucos, me afastaram da minha confortável e identitária Lisboa. Ao regressar, eu vinha sempre diferente. Seria mesmo de Kabul?
Surgiria mais tarde, teria eu uns 22 anos, um encontro inesperado com um saudita no Olivais Shopping. Ficou a olhar para mim, de forma intensa e grave. Perguntou-me em inglês: «Are you from Saudi Arabia?». Não, claro que não, que disparate! E confirma o que eu mais temia. Sou mesmo parecida com as mulheres sauditas. Bolas! Mas isso já vem estragar outra vez a justificação imaginária das minhas origens.
Até que, aos 26, naquela que foi provavelmente uma das viagens menos escolhidas da minha vida, por ser barata e ter variedade, me vi no Norte de África, entre berberes e tunisinos. E foi nesse mergulho desconhecido que encontrei a outra face de Lisboa, o outro lado do meu coração. Ali percebi que, vendo-me ao espelho, eu era igual. Que desde criança sempre tive o hábito irritante de lançar gritos estalidos com a língua no céu-da-boca, sem perceber porquê. Que nas restantes viagens que faria a Marrocos, Turquia e Tunísia de novo, algo de muito estranho me aproximava daquelas gentes. Foi nos olhares de homens e mulheres tunisinos que encontrei uma espécie de reflexo. E eles olhavam-me não como se olha para uma turista loura muito bonita, mas como quem olha para o seu semelhante.
A loucura pelas viagens tomou-me de assalto, embora de forma comedida, por não ter uma bolsa recheada. E sempre que partia para a próxima aventura, fosse no norte de África, no Mediterrâneo ou na Europa Central, eu era mais do que lisboeta: era romana, europeia, mediterrânica, árabe, atlântica.
Mas hoje, mesmo que continue presa entre definições – sou professora ou sou jornalista? Sou historiadora ou sou escritora? – eu não consigo, cada vez mais, identificar-me, vestir uma camisola apenas. É por isso, diz o Freud que há em mim, que continuo, como a pseudo-arqueóloga que já fui, a escavar Lisboa à procura de romanos, muçulmanos e gente que simplesmente gostava de viajar. E por essa ordem de ideias, sou, incontestavelmente, uma convicta e orgulhosa lisboeta.