sábado, 10 de novembro de 2012

Um périplo horripilante em Lisboa

Reportagem publicada no Jornal Público
http://www.publico.pt/local/noticia/um-periplo-horripilante-de-crimes-e-fantasmas-pelas-ruas-de-lisboa-1575804

Todas as noites, a Ghost Tours dá a conhecer uma capital diferente a lisboetas ou estrangeiros. Em vez de guias, são atores que se encarregam de liderar o caminho por entre lendas e estórias horripilantes de uma Lisboa de outros tempos

Arco da Rua Augusta, 21h30. Ouvem-se as solas dos sapatos, marcando a calçada. Mas a cidade está quase silenciosa, é a imaginação que compõe um cenário de suspense: os efeitos dos focos de luz vindos do chão, junto ao Arco, iluminam os queixos dos transeuntes e há quem passe com a gola do sobretudo virada para cima. O vento não sopra, o frio suporta-se. São as sombras e os silêncios que incomodam quem não está habituado a observar este tipo de noite, em Lisboa.
Esta é uma história de fantasmas, para quem acredita neles. Para quem não acredita, então esta é uma história de teatro, onde o palco são as ruas inclinadas do centro histórico de Lisboa, os espectadores são os clientes e os ocasionais transeuntes que colam a orelha ao texto, ao passar. Há um actor principal, vestido de capa preta com capuz e lanterna na mão. Os atores secundários, esses, são os fantasmas.

O Contador de capa preta tem como função fazer ressuscitar os mortos de que fala, com o foco da lanterna na cara ou apontando-o para os edifícios onde eles, os mortos, terão vivido. «Foi aqui que viveu uma assassina», inicia o narrador do passeio noturno, dirigindo a luz à janela de um prédio devoluto da Baixa. A estória assume contornos de filme policial e os caminhantes escutam com atenção. Finda a narrativa, o périplo é percorrido de um fôlego, sem parar. E no fim de cada história, o Contador grita ou sussurra um “Sigam-me”. E o grupo segue-o, pois claro.
É assim que a Ghost Tours trabalha. À noite, para portugueses ou estrangeiros, fugindo da confusão do dia, onde turistas e lisboetas se atropelam numa cidade cada vez mais concorrida. De Inverno, o cenário fica mais carregado, o frio aguça a imaginação e, até em dias de chuva, Lisboa parece ficar mais assustadora. O motivo do périplo é o de contar narrativas de crimes e de criminosos, lendas e acontecimentos horripilantes da História de Lisboa.

O Contador leva o grupo pela colina do Castelo acima, e, na Sé, não obstante os gritos incomodados de um sem-abrigo, a atmosfera de macabro adensa-se. O céu está mesmo preto e a catedral profundamente amarela, a lua cheia a um canto. O Contador está entusiasmado e relembra o dia em que um bispo foi lançado da torre da Sé, em pleno século XIV: «Conta-se que os seus restos mortais foram arrastados pela cidade e comidos pelos cães», vocifera. Os impropérios do sem-abrigo persistem, mas o Contador não desmancha o seu papel. A sua voz é colocada e parece ecoar no silêncio da rua. Não admira que incomode os que já dormem, apesar de não passar das dez da noite.
A subida acentua-se, desfilam fantasmas de assassinos, já há muito falecidos, e de suas vítimas, e é no Pátio do Carrasco, a caminho de Santa Luzia, que o ambiente chega a gelar. E de repente, o grupo transporta-se para um átrio quadrangular do século XIX, com casinhas baixas e janelas pequenas, carreiros intermináveis de plantas e vasos, roupa estendida nos varais, capachos à porta e gente que, embora ali viva, não vem espreitar, mas respira do outro lado da parede. A história é a de Luís Negro e o nome do pátio diz tudo. Adiante.

Sangue, suor e gargalhadas
O Contador segue agora o fantasma de Manuela de Zamora, uma ladra, pelas Escadinhas de São Crispim. Mais uma vez, ninguém vem à janela por mais que o Contador berre os feitos da mulher. O grupo arfa da subida, mas constata, com surpresa, que não conhecia aquele trajeto que desemboca à porta do Chapitô. A ladra ficou para trás, mas, uns minutos à frente, encontra-se uma outra, Giraldinha, agora nas Escadinhas de São Cristóvão. As pinturas murais alusivas ao Fado acompanham a narrativa, enquanto um grupo de raparigas passa e estaca, olhando o Contador com curiosidade. Querem seguir as palavras que captaram no ar, mas o mensageiro já voa pela Rua de Santa Justa, com a capa a ondular.

Com a Praça da Figueira no horizonte, o grupo de caminhantes noturnos exibe alguma expetativa, agora que começa a entrar em território mais conhecido. Com o Castelo de São Jorge pendurado no céu, numa faixa amarelada de muralhas, o Contador aproveita para relembrar que Lisboa tem lendas fundadoras, e que Ulisses protagonizou uma delas.
A história perde dramatismo, mas ganha romance e fantasia, para contrabalançar a sílaba tónica dada aos crimes e assassinatos. Em torno, vislumbram-se rostos da noite, habituados, porventura, a homens de capa preta. Rapazes deslizando em skates, aos pés do Mestre d’Avis. O Contador persiste no fito de aterrorizar transeuntes: senhoras e casais a passear, ou à espera de qualquer coisa no carro, turistas deambulantes. Os sustos são genuínos e parece que no passado o Contador terá mesmo provocado gritos de pavor que terão acordado meia Baixa Pombalina, no entanto a maioria destes sustos acaba por transformar-se em gargalhadas bem-dispostas.

Tempo para aterrorizar um pouco mais os caminhantes, com os fantasmas dos cristãos-novos massacrados junto ao Rossio. A luz da lanterna incide sobre a porta da Igreja de São Domingos, fechada. Os pormenores violentos das mortes provocam esgares de reprovação nos rostos dos participantes. Já houve quem tivesse reclamado do sadismo que o Contador emprega ao relatar o Massacre dos Judeus de 1506, mas é esse o propósito, afirmará, mais tarde, o narrador.
O périplo termina da pior maneira. Junto à estátua de D. Pedro, no Rossio, o Contador apresenta a escrava Catarina Maria que foi acusada de ser bruxa pela Inquisição. A imaginação dos espectadores arde com o relato da sua tortura e da sua morte, em auto-de-fé, numa fogueira anormalmente lenta. Histórias de outros tempos, mas que se tornam reais quando se olha para uma das fontes da praça e, em vez dela, se distingue claramente uma pira ardente e uma mulher que morre sufocada com o fumo e o pânico.

A noite continua enigmática, uma hora e meia depois. A lua cheia rodeia-se de uma névoa escura e o som das solas dos sapatos persiste no horizonte auditivo. No Rossio, o Contador sorri, por uma última vez, e sem que diga “Sigam-me”, desaparece, rodando sobre si, como se, na verdade, nunca tivesse existido.
Despindo a capa

Afinal, o Contador não desapareceu. Deu a volta à estátua de D. Pedro e regressou, sem a capa. Chama-se André Raposo e é um dos atores que colaboram com a Ghost Tours. O jovem alentejano, estudante de Publicidade e Marketing, mas ator profissional a tempo parcial, começou a trabalhar como contador de histórias para a empresa após ter conhecido a autora dos textos, a jornalista Inês Lampreia. O projeto, fundado em 2011 pelas empresárias Rita Ferreira e Sandra Ferreira, de 26 e 29 anos, foi a oportunidade que faltava no currículo de André e de outros três atores, que começaram a fazer as “tours”, em fevereiro de 2012.

Fazer teatro na rua tem sido um desafio para André, que enfrenta, sempre que veste a capa preta, todo o tipo de situações. «Tem sido interessante para mim trabalhar a reação das pessoas, tanto do público como dos transeuntes com quem vou interagindo. À noite, a cidade muda muito. É bom trabalhar os estímulos», explica o ator.
Os sem-abrigo são os que mais se incomodam com a passagem dos atores pelas ruas. Houve, inclusive, uma noite em que um sem-abrigo começou a insultá-lo em francês, mesmo aos seus ouvidos. São provocações que pretendem desconcentrar o ator, mas André afirma: «Tenho a personagem muito bem construída dentro de mim e o Contador de Histórias não se importa com o que lhe dizem».

Nunca lhe aconteceu lançarem-lhe água de uma janela, até porque os que por ali vivem já estão habituados aos relatos macabros do Contador. Já com os clientes, a história pode ser outra. Numa das “tours”, uma senhora esteve quase a desmaiar, na Sé: «Estava com tensão baixa, mas a história do bispo também não ajudou nada», diz André. De acordo com o ator, a reação entre portugueses e estrangeiros tem sido idêntica, mas confessa que não esperava tanta adesão do público português a este tipo de atividades.
André Raposo conhece bem Lisboa e acaba por levar as pessoas por caminhos que geralmente não conhecem, para o percurso se tornar mais interessante. A chuva não é um obstáculo e é vista como um suplemento. «Já fiz uma tour à chuva e funcionou muito bem. A cidade fica mais vazia, mais escura e mais assustadora», conclui André. «A minha personagem não tem medo de nada, mas eu tenho».

www.ghost-tours-portugal.pt (e também no Facebook)

Tours diárias de 1h30, em português ou inglês, com início às 21h30, mediante marcação prévia. Número mínimo de seis pessoas.