domingo, 4 de novembro de 2012

Lisboa, Centro de Estórias

O título desta crónica podia ser “pérolas a porcos”, mas não, não tem nada a ver. De facto, gostava de falar das pérolas, porque de facto existem, e elas são, por um lado, as narrativas fabulosas e por vezes maçadoras da nossa História. Ou então, noutra perspetiva, as pérolas podem ser os extraordinários efeitos especiais e cénicos que Lisboa Story Centre exibe. Ou seja, dois bons motivos para que se visite o dito lugar, em plena praça nobre do Terreiro do Paço. No entanto, ficaria constrangida se tivesse de associar a expressão “porcos” quer aos organizadores da exposição quer aos destinatários da mesma. Desta feita, mude-se o adágio, talvez para “dar nozes a quem não tem dentes”. Mais uma vez, refletindo, talvez não se adeque. Se as nozes forem as estórias, quem é que não tem dentes?
Outra vez, do princípio. Estórias e não histórias. O espaço é interessante e tem, como já referi, uma parafernália de maquetes, filmes, engenhocas de realidade virtual, manequins e cenários de quase tirar o fôlego. Não é normal visitar uma exposição tão louca, tão ousada e tão moderna em Lisboa. E para quem vem visitar, é natural que fique fascinado, caso consiga atinar à primeira ou segunda com os aparelhómetros do audioguia. A exposição é mais ou menos circular e só falta mesmo ter uns carris no chão para os visitantes poderem deslizar pelo espaço, a bordo de um batel mecanizado, tipo Casa dos Horrores da saudosa Feira Popular.
É possível “navegar” pelo Lisboa Story Centre, descobrindo as suas etapas, respeitando o tempo das vozes que nos sussurram aos ouvidos, ainda que por vezes tenha duvidado se não me terão dado um audioguia para crianças. Não, pelos jeitos, era mesmo assim. As vozes encenadas, o diálogo entre o puto parvo que nunca percebe nada do que o narrador diz e o próprio narrador, o Marquês de Pombal a falar como se fosse um taberneiro, o sotaque manhoso francês de um Voltaire que fala sobre o terramoto, são apenas uns arranhões auditivos. Passa, portanto. Como todos andam de auscultadores, penso que ninguém terá ouvido os meus ataques de riso.
Continuando o percurso, por vezes estranhamente anacrónico e sensacionalista (caravelas, Passarola de Bartolomeu de Gusmão, o Miguel de Vasconcelos que é atirado da janela pelos conjurados, a inquisição e o barroco), o batel imaginário conduz-nos à verdadeira sala dos horrores. É aqui, sentados no escuro e com três enormes ecrãs, que se conta como o terramoto aconteceu. Um filme foi feito, com atores e figurantes vestidos à época, calcorreando as ruas da cidade setecentista, assistindo às missas nas igrejas. O efeito especial sonoro mais estrondoso da história da museologia portuguesa abate-se sobre os assistentes: uma espécie de trovão que faz vibrar as paredes, ou assim o imaginamos, e no ecrã, o terramoto, pedras caindo em cima das pessoas, igrejas e edifícios desconjuntando-se, gritos alucinantes que parecem não ter fim, figurantes mortos que respiram com o peito arfante ou com os olhos a piscar. O tsunami é claramente filmado na Costa da Caparica, dentro de uma água limpa, onde só boiam sapatos e se vê na margem um restinho de praia. Aqui já não me safo. As pessoas estão sem os auscultadores e ouvem o meu riso. “Que insensível!”, parecem dizer com os olhos.
Perdoem-me os porcos, as pérolas, os dentes e as nozes. Gasta-se uma quantia absurda para montar um espaço de estórias, sem que haja o cuidado de se atentar aos pormenores? Sem que se questione que o Terramoto não aconteceu em segundos, num só abalo? Que a História de Portugal também é a história da escravatura, dos autos-de-fé e de governantes absolutistas?
O riso transforma-se numa ruga de apreensão. Pois é, a consciência histórica é um mistério só desvendado por alguns. Os outros, a turba, os que passam ou os que ficam, saem felizes e contentes porque assistiram a uma exposição espetacular, cheia de engenhocas e bonecos de plástico.