Gritavam-se alvíssaras à
República, lançavam-se chapéus de feltro ao ar, vislumbravam-se tempos
gloriosos que punham fim a mais de sete séculos e meio de monarquia em
Portugal. Foi assim a 5 de outubro de 1910, quando a bandeira branca de um
diplomata alemão, em plena Avenida da Liberdade, fez a turba republicana
acreditar que a fação monárquica se rendia, horas longas após as barricadas da
Rotunda. Caía o regime, o jovem rei fugia no seu Iate Amélia, com a mãe e a
avó, a bandeira azul e branca era substituída pela verde e vermelha que viria a
caracterizar um povo durante cerca de 100 anos. Juraram-se então alterações
estruturais na Educação, nas Leis, no Trabalho, nas Finanças, nos Direitos dos
Cidadãos. Criou-se uma nova Constituição, surgiu o Escudo, instituiu-se A
Portuguesa como hino nacional, canção que servira os interesses do Partido
Republicano aquando do Ultimato Inglês, em 1890. E vieram os presidentes, uns
atrás dos outros, em fila indiana, e os governos, e os bigodes de todos os
políticos que fizeram de Portugal a mais jovem República da Europa, aberta a
novos ideais, novos conflitos mundiais, novos atentados à bomba. Em suma, a uma
confusão tão grande ou maior como a que “reinava” em Portugal, anos antes, mas
com a magnânima diferença de que agora quem detinha o poder era a res publica, a coisa pública, o que é do
povo.
Foi essa a esperança que
permaneceu no código genético do português do século XX. Um esgar irónico de
incredulidade pode transportá-lo para o pessimismo que, dizem, o caracteriza,
mas é esse resquício do que concebe ser a República, e mais tarde a Democracia,
que tem feito saltar a tampa a um povo que é, aparentemente melancólico e
apático, mas que no final de contas tem estado apenas adormecido.
Os recentes acontecimentos que
fizeram levantar a turba “antitroikiana”, o sentimento de congregação
eletrónica em torno das redes sociais, da agenda semanal de manifs, e a
agridoce ilusão de que se conseguem vitórias, chumbando leis, estão
precisamente a despertar o que de mais republicano existe nas gentes
portuguesas. A união sente-se além-fronteiras, espraia-se para os países
mediterrânicos, onde, explica a História, a vida sempre foi mais difícil do que
no norte.
A memória da República, se bem
que resgatada em todo o seu fulgor há dois anos com sucessivas exposições e
deambulações comemorativas que até a um amante de História tiravam o fôlego,
vai perdendo reconhecimento por parte das autoridades da “República” Portuguesa
e ninguém faz nada por isso. O desaparecimento do feriado é um anúncio surdo de
que algo terrivelmente obtuso se passa com a ideologia que comanda o país. Um
desrespeito pelas almas de Cândido dos Reis, que cometeu suicídio pensando
erradamente que a revolução fracassara; um insulto a Machado dos Santos, cujo
cadáver deve andar num redemoinho impressionante dentro do seu caixão.
Em vez disso, de um feriado, de
uma agenda cultural que fervilhe de atividades alusivas à República, de filmes
e documentários que expliquem aos cidadãos como se construiu o seu país no
início do século XX, persiste a parte mais chata. O discurso de mais um bigode,
agora escondido da verdadeira res publica,
com medo de intervenções antitroikianas, mas cometendo gafes atrás de gafes,
exibindo sorrisos cada vez mais amarelos, e aquele já tão característico
silêncio ensurdecedor que faz do símbolo máximo da República o seu principal
opositor.
Não houve indícios de
insurreição, apenas a de uma senhora desesperada que logo foi amordaçada para
que o protocolo não se desmanchasse. Uma cantora lírica que pela voz tentou
acordar quem a ouvia. Durante o dia, não se viu a República em lado nenhum, não
se sentiu o seu cheiro a revolução, não se ouviu A Portuguesa, não se gritou
Vivas à dita cuja. Era o último feriado e esse tinha de ser bem aproveitado,
com os comandos estendidos à televisão e os centros comerciais à cunha.
Curiosamente, a turba acudiu a
Mariza, à noite. Único marco das comemorações em Lisboa, cidade que fez nascer
a República. Eram milhares no Martim Moniz, crianças, jovens, velhos, cães,
famílias inteiras e grupos de amigos. Gente que procurou no seio da Mouraria os
ecos da sua identidade coletiva mais antiga, batendo o pé aos ritmos mais
gingados dos fados de Mariza, emocionando-se com os trinados tão lusos das
guitarras estridentes. E todos, mesmo os que para lá foram conviver e
aproveitar a “borla” do ano, celebraram, sem saber, uma República que é a voz
do povo, unido, forte, batendo o pé ao mesmo tempo, num ritmo compassado, quer
seja ao som d’A Portuguesa, do Grândola Vila Morena, ou mesmo do Gente da Minha
Terra.
6 de outubro 2012