domingo, 4 de novembro de 2012

Mariza a Presidente!




Gritavam-se alvíssaras à República, lançavam-se chapéus de feltro ao ar, vislumbravam-se tempos gloriosos que punham fim a mais de sete séculos e meio de monarquia em Portugal. Foi assim a 5 de outubro de 1910, quando a bandeira branca de um diplomata alemão, em plena Avenida da Liberdade, fez a turba republicana acreditar que a fação monárquica se rendia, horas longas após as barricadas da Rotunda. Caía o regime, o jovem rei fugia no seu Iate Amélia, com a mãe e a avó, a bandeira azul e branca era substituída pela verde e vermelha que viria a caracterizar um povo durante cerca de 100 anos. Juraram-se então alterações estruturais na Educação, nas Leis, no Trabalho, nas Finanças, nos Direitos dos Cidadãos. Criou-se uma nova Constituição, surgiu o Escudo, instituiu-se A Portuguesa como hino nacional, canção que servira os interesses do Partido Republicano aquando do Ultimato Inglês, em 1890. E vieram os presidentes, uns atrás dos outros, em fila indiana, e os governos, e os bigodes de todos os políticos que fizeram de Portugal a mais jovem República da Europa, aberta a novos ideais, novos conflitos mundiais, novos atentados à bomba. Em suma, a uma confusão tão grande ou maior como a que “reinava” em Portugal, anos antes, mas com a magnânima diferença de que agora quem detinha o poder era a res publica, a coisa pública, o que é do povo.
Foi essa a esperança que permaneceu no código genético do português do século XX. Um esgar irónico de incredulidade pode transportá-lo para o pessimismo que, dizem, o caracteriza, mas é esse resquício do que concebe ser a República, e mais tarde a Democracia, que tem feito saltar a tampa a um povo que é, aparentemente melancólico e apático, mas que no final de contas tem estado apenas adormecido.
Os recentes acontecimentos que fizeram levantar a turba “antitroikiana”, o sentimento de congregação eletrónica em torno das redes sociais, da agenda semanal de manifs, e a agridoce ilusão de que se conseguem vitórias, chumbando leis, estão precisamente a despertar o que de mais republicano existe nas gentes portuguesas. A união sente-se além-fronteiras, espraia-se para os países mediterrânicos, onde, explica a História, a vida sempre foi mais difícil do que no norte.
A memória da República, se bem que resgatada em todo o seu fulgor há dois anos com sucessivas exposições e deambulações comemorativas que até a um amante de História tiravam o fôlego, vai perdendo reconhecimento por parte das autoridades da “República” Portuguesa e ninguém faz nada por isso. O desaparecimento do feriado é um anúncio surdo de que algo terrivelmente obtuso se passa com a ideologia que comanda o país. Um desrespeito pelas almas de Cândido dos Reis, que cometeu suicídio pensando erradamente que a revolução fracassara; um insulto a Machado dos Santos, cujo cadáver deve andar num redemoinho impressionante dentro do seu caixão.
Em vez disso, de um feriado, de uma agenda cultural que fervilhe de atividades alusivas à República, de filmes e documentários que expliquem aos cidadãos como se construiu o seu país no início do século XX, persiste a parte mais chata. O discurso de mais um bigode, agora escondido da verdadeira res publica, com medo de intervenções antitroikianas, mas cometendo gafes atrás de gafes, exibindo sorrisos cada vez mais amarelos, e aquele já tão característico silêncio ensurdecedor que faz do símbolo máximo da República o seu principal opositor.
Não houve indícios de insurreição, apenas a de uma senhora desesperada que logo foi amordaçada para que o protocolo não se desmanchasse. Uma cantora lírica que pela voz tentou acordar quem a ouvia. Durante o dia, não se viu a República em lado nenhum, não se sentiu o seu cheiro a revolução, não se ouviu A Portuguesa, não se gritou Vivas à dita cuja. Era o último feriado e esse tinha de ser bem aproveitado, com os comandos estendidos à televisão e os centros comerciais à cunha.
Curiosamente, a turba acudiu a Mariza, à noite. Único marco das comemorações em Lisboa, cidade que fez nascer a República. Eram milhares no Martim Moniz, crianças, jovens, velhos, cães, famílias inteiras e grupos de amigos. Gente que procurou no seio da Mouraria os ecos da sua identidade coletiva mais antiga, batendo o pé aos ritmos mais gingados dos fados de Mariza, emocionando-se com os trinados tão lusos das guitarras estridentes. E todos, mesmo os que para lá foram conviver e aproveitar a “borla” do ano, celebraram, sem saber, uma República que é a voz do povo, unido, forte, batendo o pé ao mesmo tempo, num ritmo compassado, quer seja ao som d’A Portuguesa, do Grândola Vila Morena, ou mesmo do Gente da Minha Terra.
6 de outubro 2012