sábado, 16 de novembro de 2013

Na Polónia, os arqueólogos andam às voltas com os vampiros

em http://www.publico.pt/ciencias/jornal/na-polonia-os-arqueologos-andam-as-voltas-com-os-26977968



































As hipóteses para práticas de enterramento consideradas estranhas são várias - entre elas, a que de as 17 pessoas encontradas na Polónia com as cabeças cortadas eram vampiros. Verdade ou fantasia, esta descoberta desenterrou o antigo medo que as populações da Europa de Leste sentiam pelos vampiros
Ao longo de Julho, foram sendo desenterrados 43 esqueletos no local de construção de uma estrada na cidade de Gliwice, na Polónia. Trata-se de um antigo cemitério, que os arqueólogos julgam pertencer ao século XV ou XVI e que traz agora um mistério: 17 dos esqueletos tinham a cabeça separada do corpo, a repousar entre as pernas e as mãos. Junto à cabeça havia ainda pedras e, no caso de um deles, a cabeça repousava na dobra do braço. O que tem tudo isto de especial?
À partida, esta descoberta remete para uma época em que as pessoas acreditavam na existência de seres maléficos que o Ocidente imortalizou como vampiros. A equipa de arqueólogos encabeçada por Jacek Pierzak e Lukasz Obtulowicz, do Departamento Regional de Conservação de Monumentos de Katowice (perto de Gliwice), pôs a hipótese de se estar perante pessoas enterradas seguindo práticas antivampíricas, até porque já tinham sido anteriormente descobertas na Polónia outras sepulturas com este tipo de enterramento.
"Tudo isto servia para impedir os vampiros de regressar à vida", declarou Lukasz Obtulowicz ao jornal polaco Dziennik Zachodni. "Era uma das maneiras mais comuns de enterrar vampiros", acrescentou Jacek Pierzak. A raridade da descoberta prende-se com o facto de nunca terem sido encontrados, "num só lugar, tantas sepulturas de [presumíveis] "vampiros"", explicou Pierzak.
A prática da decapitação dos corpos - já mortos - estava ligada à crença de que muitos destes indivíduos, depois de enterrados, se desembaraçariam das suas mortalhas e regressariam para sugar o sangue dos vivos. Sem as cabeças, os supostos vampiros dificilmente conseguiriam encontrar o seu caminho de volta.
No entanto, os arqueólogos não negam outras hipóteses, como a "decapitação ter sido a causa da morte", refere ao PÚBLICO, Jacek Pierzak, o que aponta para a suspeita de que os 17 esqueletos tenham pertencido a pessoas condenadas à morte e executadas por decapitação. Até porque, não muito longe, foi descoberta uma forca, que era um local de execução de criminosos e prisioneiros.
"No início, descobrimos duas ou três sepulturas com as cabeças dos mortos entre as pernas e pensámos que podiam tratar-se de práticas antivampíricas. Mas não excluímos que podiam ser esqueletos de pessoas condenadas à morte", acrescentou Pierzak.
Embora este achado não se possa relacionar exclusivamente com "práticas antivampíricas", também não se pode ignorar a disposição dos esqueletos e a forma como foram colocadas pedras junto às cabeças - sinais que retratam, de qualquer forma, o universo supersticioso do povo polaco quanto à crença em vampiros. Era comum, aliás, enterrar-se um corpo que antes tinha sido decapitado "pela sua ordem anatómica", o que não se verificou com os esqueletos de Gliwice, defendeu Jacek Pierzak.
Assim, esta descoberta pode "estar relacionada com o facto de se querer impedir os mortos de voltar ao mundo dos vivos, o que acaba também por ser uma prática antivampírica", explicou-nos este arqueólogo.
O achado, que suscitou interesse mediático mundial por ter sido associado ao universo da existência de vampiros, não deixa de constituir um enigma para a arqueologia e a antropologia forense. É que os restos mortais têm ainda outra particularidade: quase não havia objectos com os esqueletos, o que por si não é uma situação vulgar, pois seria comum encontrar-se pelo menos os alfinetes que prendiam a mortalha dos cadáveres. A equipa de arqueologia só resgatou junto dos esqueletos um anel, um colchete e um tijolo, cuja análise permitiu dizer que os achados são dos séculos XV e XVI, "embora seja uma datação algo frágil", considerou Jacek Pierzak.
O estudo antropológico das ossadas permitirá avançar uma datação mais concreta, bem como determinar "o sexo, a idade e o historial clínico dos esqueletos", contou o arqueólogo. Os historiadores vão também juntar-se à investigação, para procurar pistas nos antigos registos de execuções, na posse da Igreja.
Os 17 esqueletos decapitados poderão ter ainda outra explicação, que confunde o mundo dos vampiros com o medo de doenças como a cólera: alguns indivíduos eram acusados de causar estas epidemias em vida, regressando após a morte para provocar mais doenças. "Há casos documentados durante epidemias, entre os séculos XVII e XIX, de pessoas com aspecto estranho acusadas de terem sido as causadoras do surto [de cólera ou peste negra]. É por isso que se exumavam os corpos e se lhes cortavam as cabeças com uma pá, colocando-as depois na zona do estômago, com pedras por cima", esclareceu Jacek Pierzak, que refere ainda a técnica de perfuração do coração com estacas de ferro ou de madeira. "Era o que acontecia quando as práticas antivampíricas ocorriam após a morte."
Crenças, lendas ou histórias de terror, em qualquer destas categorias se pode encaixar a descoberta de Gliwice, tanto mais que entre os séculos X e XIX era usual a população acreditar que tais seres existiam, sobretudo na Europa de Leste, nos Balcãs e nos países eslavos.
Acreditavam de tal forma que era comum desenterrarem os corpos semanas ou meses depois do enterro, para verificar o estado em que se encontravam. Aí pode residir a explicação para o medo irracional que as pessoas tinham de vampiros: o desconhecimento do processo de decomposição dos cadáveres, que, uma vez desenterrados, já não apresentariam sinais de rigor mortis. Vestígios de fluidos corporais ao redor da boca e do nariz fariam supor à população, imbuída de uma superstição demoníaca, de que se tratariam de vampiros que se teriam alimentado de sangue recentemente.
O estudo do folclore destas tradições é claro. "O vampiro era a antropomorfização do medo", explica Daniel Collins, especialista norte-americano em folclore eslavo, numa aula que a Universidade Estadual do Ohio divulgou na Internet.
Outras sepulturas pela Europa
A descoberta do cemitério de Gliwice não é única no cenário de práticas mortuárias relacionadas com o medo do vampirismo, durante a Idade Média e a Idade Moderna. Já em 2009, na cidade de Drawsko, no Norte da Polónia, ao escavar-se um cemitério medieval, descobriram-se três sepulturas diferentes das restantes. Dois dos esqueletos foram encontrados com foices colocadas sobre o pescoço dos cadáveres e um outro tinha as mãos amarradas e uma pedra por cima da garganta, para garantir que o morto não se levantava.
As práticas antivampíricas da colocação de objectos de ferro pontiagudos sobre os cadáveres de pessoas suspeitas de vampirismo e de pedras e lajes por cima dos corpos confirmam o medo que as populações sentiam deste tipo de entidades sobrenaturais.
A superstição, associada à histeria do medo de vampiros, tem sido atestada por várias descobertas arqueológicas, sobretudo nos países da Europa Oriental. Só na Bulgária, descobriram-se até ao ano passado mais de 100 sepulturas de presumíveis "vampiros", a maior parte em regiões rurais. Em Sozopol, uma das cidades turísticas búlgaras mais famosas do Mar Negro, encontraram-se dois esqueletos que tinham sido perfurados com estacas de ferro, prática antivampírica que os arqueólogos dizem ter sido comum até ao início do século XX, na Bulgária.
Em 2006, a descoberta do esqueleto de uma mulher com um tijolo introduzido na boca, perto de Veneza, Itália, veio dar gás à hipótese alimentada pelo folclore medieval de que os vampiros comiam as suas mortalhas para se escaparem para o reino dos vivos. O corpo da mulher, datado do século XVI, estava num cemitério onde tinham sido enterradas vítimas de peste negra.
Várias descobertas nas últimas décadas atestam outras formas de prevenir ataques de vampiros. Em 1994, um corpo exumado numa escavação arqueológica na ilha de Lesbos, Grécia, revelava que o cadáver tinha sido pregado ao caixão com pesadas estacas de ferro através do pescoço, da pélvis e dos tornozelos. Em 1991, na Eslováquia, um outro esqueleto, encontrado numa escavação numa igreja, mostrava que o corpo tinha sido cortado em duas partes, torso e pernas, e que, além das grades de ferro que reforçavam o caixão, foram colocadas pedras por cima das pernas. Pela mesma altura, seriam ainda postas a descoberto na agora República Checa 14 sepulturas cujos corpos haviam sido trespassados com estacas de metal e sobre os quais estavam igualmente pedras pesadas.
Embora a maior parte destas ossadas esteja datada entre os século XI e XVI, a explicação para o fenómeno da fobia aos vampiros, principalmente na Europa de Leste, prende-se com a cristianização destes territórios ocorrida entre os séculos XI e XII. Bruxas, espíritos malignos, entre outros seres que representariam a antítese de Cristo e que serviam igualmente como bodes expiatórios para as epidemias que atacavam as comunidades, eram assim alvo de suspeita, sendo muitos executados e outros "agarrados às sepulturas", após a morte.
O Ocidente só ficaria a conhecer as histórias dos vampiros da Europa de Leste após a anexação destes territórios pelo império austríaco, no século XVIII. O Iluminismo e a fixação no papel das tradições orais trariam a ideia da existência de vampiros aos ocidentais. No último século, os vampiros têm sido presença constante no imaginário ocidental, de que são exemplos famosos o livro Drácula (1897), de Bram Stoker, e o filme Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, cuja rodagem na Eslováquia é por sua vez revisitada em 2000, no filme A Sombra do Vampiro. Mais recentemente, a saga Twilight e a série televisiva True Blood conheceram grande sucesso mundial.
O próprio Voltaire, imbuído de curiosidade, refere o tema dos vampiros no seuDictionnaire Philosofique, de 1769, descrevendo os supostos mortos-vivos e os locais onde foram avistados. Mas, à luz da razão setecentista, o filósofo rematava: "Não sou um profundo conhecedor de teologia para expressar a minha opinião sobre este assunto. Mas, como em todos os assuntos duvidosos, é preciso tomar o caminho mais fácil." Como quem diz que o melhor é não desafiar o mundo sobrenatural.

20.08.2013