As
hipóteses para práticas de enterramento consideradas estranhas são várias -
entre elas, a que de as 17 pessoas encontradas na Polónia com as cabeças
cortadas eram vampiros. Verdade ou fantasia, esta descoberta desenterrou o
antigo medo que as populações da Europa de Leste sentiam pelos vampiros
Ao
longo de Julho, foram sendo desenterrados 43 esqueletos no local de construção
de uma estrada na cidade de Gliwice, na Polónia. Trata-se de um antigo
cemitério, que os arqueólogos julgam pertencer ao século XV ou XVI e que traz
agora um mistério: 17 dos esqueletos tinham a cabeça separada do corpo, a
repousar entre as pernas e as mãos. Junto à cabeça havia ainda pedras e, no
caso de um deles, a cabeça repousava na dobra do braço. O que tem tudo isto de
especial?
À
partida, esta descoberta remete para uma época em que as pessoas acreditavam na
existência de seres maléficos que o Ocidente imortalizou como vampiros. A
equipa de arqueólogos encabeçada por Jacek Pierzak e Lukasz Obtulowicz, do
Departamento Regional de Conservação de Monumentos de Katowice (perto de
Gliwice), pôs a hipótese de se estar perante pessoas enterradas seguindo
práticas antivampíricas, até porque já tinham sido anteriormente descobertas na
Polónia outras sepulturas com este tipo de enterramento.
"Tudo
isto servia para impedir os vampiros de regressar à vida", declarou Lukasz
Obtulowicz ao jornal polaco Dziennik
Zachodni. "Era uma das maneiras mais comuns de enterrar
vampiros", acrescentou Jacek Pierzak. A raridade da descoberta prende-se
com o facto de nunca terem sido encontrados, "num só lugar, tantas
sepulturas de [presumíveis] "vampiros"", explicou Pierzak.
A
prática da decapitação dos corpos - já mortos - estava ligada à crença de que
muitos destes indivíduos, depois de enterrados, se desembaraçariam das suas
mortalhas e regressariam para sugar o sangue dos vivos. Sem as cabeças, os
supostos vampiros dificilmente conseguiriam encontrar o seu caminho de volta.
No
entanto, os arqueólogos não negam outras hipóteses, como a "decapitação
ter sido a causa da morte", refere ao PÚBLICO, Jacek Pierzak, o que aponta
para a suspeita de que os 17 esqueletos tenham pertencido a pessoas condenadas
à morte e executadas por decapitação. Até porque, não muito longe, foi
descoberta uma forca, que era um local de execução de criminosos e
prisioneiros.
"No
início, descobrimos duas ou três sepulturas com as cabeças dos mortos entre as
pernas e pensámos que podiam tratar-se de práticas antivampíricas. Mas não
excluímos que podiam ser esqueletos de pessoas condenadas à morte",
acrescentou Pierzak.
Embora
este achado não se possa relacionar exclusivamente com "práticas
antivampíricas", também não se pode ignorar a disposição dos esqueletos e
a forma como foram colocadas pedras junto às cabeças - sinais que retratam, de
qualquer forma, o universo supersticioso do povo polaco quanto à crença em
vampiros. Era comum, aliás, enterrar-se um corpo que antes tinha sido
decapitado "pela sua ordem anatómica", o que não se verificou com os
esqueletos de Gliwice, defendeu Jacek Pierzak.
Assim,
esta descoberta pode "estar relacionada com o facto de se querer impedir
os mortos de voltar ao mundo dos vivos, o que acaba também por ser uma prática
antivampírica", explicou-nos este arqueólogo.
O
achado, que suscitou interesse mediático mundial por ter sido associado ao
universo da existência de vampiros, não deixa de constituir um enigma para a
arqueologia e a antropologia forense. É que os restos mortais têm ainda outra
particularidade: quase não havia objectos com os esqueletos, o que por si não é
uma situação vulgar, pois seria comum encontrar-se pelo menos os alfinetes que
prendiam a mortalha dos cadáveres. A equipa de arqueologia só resgatou junto
dos esqueletos um anel, um colchete e um tijolo, cuja análise permitiu dizer
que os achados são dos séculos XV e XVI, "embora seja uma datação algo
frágil", considerou Jacek Pierzak.
O
estudo antropológico das ossadas permitirá avançar uma datação mais concreta,
bem como determinar "o sexo, a idade e o historial clínico dos
esqueletos", contou o arqueólogo. Os historiadores vão também juntar-se à
investigação, para procurar pistas nos antigos registos de execuções, na posse
da Igreja.
Os
17 esqueletos decapitados poderão ter ainda outra explicação, que confunde o
mundo dos vampiros com o medo de doenças como a cólera: alguns indivíduos eram
acusados de causar estas epidemias em vida, regressando após a morte para
provocar mais doenças. "Há casos documentados durante epidemias, entre os
séculos XVII e XIX, de pessoas com aspecto estranho acusadas de terem sido as
causadoras do surto [de cólera ou peste negra]. É por isso que se exumavam os
corpos e se lhes cortavam as cabeças com uma pá, colocando-as depois na zona do
estômago, com pedras por cima", esclareceu Jacek Pierzak, que refere ainda
a técnica de perfuração do coração com estacas de ferro ou de madeira.
"Era o que acontecia quando as práticas antivampíricas ocorriam após a
morte."
Crenças,
lendas ou histórias de terror, em qualquer destas categorias se pode encaixar a
descoberta de Gliwice, tanto mais que entre os séculos X e XIX era usual a
população acreditar que tais seres existiam, sobretudo na Europa de Leste, nos
Balcãs e nos países eslavos.
Acreditavam
de tal forma que era comum desenterrarem os corpos semanas ou meses depois do
enterro, para verificar o estado em que se encontravam. Aí pode residir a
explicação para o medo irracional que as pessoas tinham de vampiros: o
desconhecimento do processo de decomposição dos cadáveres, que, uma vez
desenterrados, já não apresentariam sinais de rigor
mortis. Vestígios de fluidos corporais ao redor da boca e do nariz fariam
supor à população, imbuída de uma superstição demoníaca, de que se tratariam de
vampiros que se teriam alimentado de sangue recentemente.
O
estudo do folclore destas tradições é claro. "O vampiro era a
antropomorfização do medo", explica Daniel Collins, especialista
norte-americano em folclore eslavo, numa aula que a Universidade Estadual do
Ohio divulgou na Internet.
Outras
sepulturas pela Europa
A
descoberta do cemitério de Gliwice não é única no cenário de práticas
mortuárias relacionadas com o medo do vampirismo, durante a Idade Média e a
Idade Moderna. Já em 2009, na cidade de Drawsko, no Norte da Polónia, ao
escavar-se um cemitério medieval, descobriram-se três sepulturas diferentes das
restantes. Dois dos esqueletos foram encontrados com foices colocadas sobre o
pescoço dos cadáveres e um outro tinha as mãos amarradas e uma pedra por cima
da garganta, para garantir que o morto não se levantava.
As
práticas antivampíricas da colocação de objectos de ferro pontiagudos sobre os
cadáveres de pessoas suspeitas de vampirismo e de pedras e lajes por cima dos
corpos confirmam o medo que as populações sentiam deste tipo de entidades
sobrenaturais.
A
superstição, associada à histeria do medo de vampiros, tem sido atestada por
várias descobertas arqueológicas, sobretudo nos países da Europa Oriental. Só
na Bulgária, descobriram-se até ao ano passado mais de 100 sepulturas de
presumíveis "vampiros", a maior parte em regiões rurais. Em Sozopol,
uma das cidades turísticas búlgaras mais famosas do Mar Negro, encontraram-se
dois esqueletos que tinham sido perfurados com estacas de ferro, prática
antivampírica que os arqueólogos dizem ter sido comum até ao início do século
XX, na Bulgária.
Em
2006, a descoberta do esqueleto de uma mulher com um tijolo introduzido na
boca, perto de Veneza, Itália, veio dar gás à hipótese alimentada pelo folclore
medieval de que os vampiros comiam as suas mortalhas para se escaparem para o
reino dos vivos. O corpo da mulher, datado do século XVI, estava num cemitério
onde tinham sido enterradas vítimas de peste negra.
Várias
descobertas nas últimas décadas atestam outras formas de prevenir ataques de
vampiros. Em 1994, um corpo exumado numa escavação arqueológica na ilha de
Lesbos, Grécia, revelava que o cadáver tinha sido pregado ao caixão com pesadas
estacas de ferro através do pescoço, da pélvis e dos tornozelos. Em 1991, na
Eslováquia, um outro esqueleto, encontrado numa escavação numa igreja, mostrava
que o corpo tinha sido cortado em duas partes, torso e pernas, e que, além das
grades de ferro que reforçavam o caixão, foram colocadas pedras por cima das
pernas. Pela mesma altura, seriam ainda postas a descoberto na agora República
Checa 14 sepulturas cujos corpos haviam sido trespassados com estacas de metal
e sobre os quais estavam igualmente pedras pesadas.
Embora
a maior parte destas ossadas esteja datada entre os século XI e XVI, a
explicação para o fenómeno da fobia aos vampiros, principalmente na Europa de
Leste, prende-se com a cristianização destes territórios ocorrida entre os
séculos XI e XII. Bruxas, espíritos malignos, entre outros seres que
representariam a antítese de Cristo e que serviam igualmente como bodes expiatórios
para as epidemias que atacavam as comunidades, eram assim alvo de suspeita,
sendo muitos executados e outros "agarrados às sepulturas", após a
morte.
O
Ocidente só ficaria a conhecer as histórias dos vampiros da Europa de Leste
após a anexação destes territórios pelo império austríaco, no século XVIII. O
Iluminismo e a fixação no papel das tradições orais trariam a ideia da
existência de vampiros aos ocidentais. No último século, os vampiros têm sido
presença constante no imaginário ocidental, de que são exemplos famosos o livro Drácula (1897), de Bram Stoker, e o filme Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, cuja rodagem
na Eslováquia é por sua vez revisitada em 2000, no filme A Sombra do Vampiro. Mais
recentemente, a saga Twilight e a série televisiva True Blood conheceram grande sucesso mundial.
O
próprio Voltaire, imbuído de curiosidade, refere o tema dos vampiros no seuDictionnaire
Philosofique, de 1769, descrevendo os supostos mortos-vivos e os locais
onde foram avistados. Mas, à luz da razão setecentista, o filósofo rematava:
"Não sou um profundo conhecedor de teologia para expressar a minha opinião
sobre este assunto. Mas, como em todos os assuntos duvidosos, é preciso tomar o
caminho mais fácil." Como quem diz que o melhor é não desafiar o mundo
sobrenatural.
20.08.2013