segunda-feira, 12 de novembro de 2012

ADN cor de alface


A respeito de uma entrevista de Richard Zimmler e Alexandre Quintanilha, este domingo, ao suplemento 2 do Público, fiquei a remoer numa frase dita pelo cientista Quintanilha: «É muito forte em mim esta repulsa pelas camisolas. (…) O que é que eu sou? Tenho uma mãe alemã, um pai açoriano, nasci em Moçambique, vivi na África do Sul muitos anos, estive na Califórnia, estou em Portugal, tenho nacionalidade portuguesa e americana. Não me faz confusão nenhuma não saber identificar-me».
Ora de tal forma remoí nesta questão, até porque as questões de identidade me preocupam e chamam a atenção, e dei por mim a afirmar que sou lisboeta. Essa é uma verdade incontestável. Sou lisboeta porque nasci no Hospital da Estefânia; porque vivi no Chiado até aos 18 anos, e depois em Campolide e em Benfica; porque estudei nas escolas já não existentes da Baixa e arredores e mais tarde na Faculdade de Letras de Lisboa; porque trabalhei muitas vezes em Lisboa; porque calcorreio as suas ruas históricas com pé leve; porque aprendi a acordar de manhã e a respirar o brilho e a branquidão da minha cidade ribeirinha.
Não sou de mais lado nenhum. Não me identifico com outras cidades do país, apenas as admiro. Sonho com o dia em que parto com uma mala de cartão à descoberta do mundo, do mais mediterrânico possível ao longínquo mais profundo. E sonho, nesse sonho, regressar, com a mala de cartão mais pesada, à minha cidade, quer ela esteja embrulhada num manto de névoa e chuva quer esteja de braços estendidos ao sol, esperando por mim. Esse é o laço. Essa é a minha identidade. E essa, parece-me, é a mesma espinha dorsal que os portugueses tiveram a partir de 1415, como um vício de quem precisa urgentemente de viajar, conquistar, conhecer, mas sempre com o fito de regressar à sua mãe, ao seu berço, à sua origem.
Os meus pais não nasceram em Lisboa e conheceram-se em Paris. Vivem e trabalham na capital há cerca de 40 anos. Neste caso, não foi um ponto de partida, mas sim de chegada. Lisboa recebeu-os de braços abertos, num ano que adivinhava já a liberdade, e por isso, depois da cegonha parisiense ter feito seus negócios ainda por terras francas, surgiu a minha irmã, fruto de um encontro entre duas pessoas numa cidade distante. Nasceu em Lisboa, mas veio encomendada de Paris. O que me parece ser mais chique do que uma pessoa que é encomendada e nasce simplesmente em Lisboa. Mas nesse ponto, atrevo-me a dizer: Sou mais lisboeta!
A História entranhou-se-me no corpo como peçonha há cerca de 20 anos e Lisboa é a causa agonizante desse meu mal. E tudo começou quando, aborrecida, e sem vontade nenhuma de fazer um trabalho chato para a disciplina de História, sobre os Descobrimentos, a caneta começou a escarafunchar o papel à procura do cheiro da canela, do brilho do ouro e do bulício dos marinheiros descarregando mercadorias. Nascia a também muito lisboeta personagem que eu envergava sempre que me apetecia embarcar numa deambulação criativa para fora dos meus afazeres menores de estudante. Assim, viajando nos livros e nas histórias que comecei a escrever, me afirmei, com unhas e dentes, uma lisboeta convicta e orgulhosa.
Com o passar do tempo, a história desta personagem (cujo nome não vou referir ainda, propositadamente) começou a alargar-se para lá das fronteiras de Lisboa e de Portugal. Porquê? Eis a explicação: A cada vez mais insistente pergunta «Tens família indiana?» começou a provocar uma certa comichão no meu Eu identitário e a questionar a hipótese «E se eu tiver mesmo família indiana?». Isso transformava toda a minha razão de ser lisboeta! Mas a dúvida persistia sempre. O tom de pele e o facto de se desconhecer a identidade de um avô faziam-me ter vontade de mais uma vez deambular num universo fantástico de aventuras, mas que agora me transportavam para o Índico e para bordo de um navio quinhentista…
Agora sim, posso revelar. Pelos quinze anos e porque me apeteceu mergulhar na história de forma literária, criei a tal personagem. Precisava de algo que a caracterizasse, que a fizesse estrangeira, de modo a ser conduzida pelas personagens da época que eu inventava no papel. Se fosse uma simples escrava, quem me ligaria importância e me explicaria as coisas que eu precisava de escrever no trabalho de História? Sim, uma princesa! Mas uma princesa de calças de ganga e ténis, como é óbvio. Porquê? Porque… vinha de um reino distante e lá, as modas eram outras… De onde? Hmmm… De Deli! Não, nessa altura, já os portugueses lá andavam e sabiam que eles não usavam calças de ganga. De… Islamabad? Uii, nome muito comprido para ficar no ouvido. Mas espera, há aqui no mapa um país perto da Índia que tem uma capital com um nome fixe: Kabul! Ya, é isso mesmo, venho de Kabul, do longínquo reino do Afeganistão. Ficou. O nome é giro e supostamente as moças afegãs serão parecidas com as indianas, pensei. É só para a personagem, ninguém sabe onde fica, ninguém ouve falar de Kabul, em 1992.
Depois disto, quando me surgia a pergunta «Tens família indiana?», respondia, rápida e certeiramente: «Não, tenho família em Kabul, no Afeganistão». A resposta convencia alguns colegas, mas não me convencia a mim. Até que em 1997, a Kabul que havia em mim saiu do papel e veio ao meu encontro, numa manhã de primavera. Agora já todos ouviam falar de Kabul, de talibãs e de burkas. Eu transformei-me naquela rapariga morena e rechonchuda de calças de ganga, pronta a partir para a aventura. E assim me descolei do papel e entrei num comboio onde percebi o que era não ter identidade. Esse périplo que encetei, entre aventuras arqueológicas e páginas escritas de histórias reais, fez-me mergulhar numa profusão de rostos, paisagens, pronúncias e cheiros que, aos poucos, me afastaram da minha confortável e identitária Lisboa. Ao regressar, eu vinha sempre diferente. Seria mesmo de Kabul?
Surgiria mais tarde, teria eu uns 22 anos, um encontro inesperado com um saudita no Olivais Shopping. Ficou a olhar para mim, de forma intensa e grave. Perguntou-me em inglês: «Are you from Saudi Arabia?». Não, claro que não, que disparate! E confirma o que eu mais temia. Sou mesmo parecida com as mulheres sauditas. Bolas! Mas isso já vem estragar outra vez a justificação imaginária das minhas origens.
Até que, aos 26, naquela que foi provavelmente uma das viagens menos escolhidas da minha vida, por ser barata e ter variedade, me vi no Norte de África, entre berberes e tunisinos. E foi nesse mergulho desconhecido que encontrei a outra face de Lisboa, o outro lado do meu coração. Ali percebi que, vendo-me ao espelho, eu era igual. Que desde criança sempre tive o hábito irritante de lançar gritos estalidos com a língua no céu-da-boca, sem perceber porquê. Que nas restantes viagens que faria a Marrocos, Turquia e Tunísia de novo, algo de muito estranho me aproximava daquelas gentes. Foi nos olhares de homens e mulheres tunisinos que encontrei uma espécie de reflexo. E eles olhavam-me não como se olha para uma turista loura muito bonita, mas como quem olha para o seu semelhante.
A loucura pelas viagens tomou-me de assalto, embora de forma comedida, por não ter uma bolsa recheada. E sempre que partia para a próxima aventura, fosse no norte de África, no Mediterrâneo ou na Europa Central, eu era mais do que lisboeta: era romana, europeia, mediterrânica, árabe, atlântica.
Mas hoje, mesmo que continue presa entre definições – sou professora ou sou jornalista? Sou historiadora ou sou escritora? – eu não consigo, cada vez mais, identificar-me, vestir uma camisola apenas. É por isso, diz o Freud que há em mim, que continuo, como a pseudo-arqueóloga que já fui, a escavar Lisboa à procura de romanos, muçulmanos e gente que simplesmente gostava de viajar. E por essa ordem de ideias, sou, incontestavelmente, uma convicta e orgulhosa lisboeta.

sábado, 10 de novembro de 2012

Um périplo horripilante em Lisboa

Reportagem publicada no Jornal Público
http://www.publico.pt/local/noticia/um-periplo-horripilante-de-crimes-e-fantasmas-pelas-ruas-de-lisboa-1575804

Todas as noites, a Ghost Tours dá a conhecer uma capital diferente a lisboetas ou estrangeiros. Em vez de guias, são atores que se encarregam de liderar o caminho por entre lendas e estórias horripilantes de uma Lisboa de outros tempos

Arco da Rua Augusta, 21h30. Ouvem-se as solas dos sapatos, marcando a calçada. Mas a cidade está quase silenciosa, é a imaginação que compõe um cenário de suspense: os efeitos dos focos de luz vindos do chão, junto ao Arco, iluminam os queixos dos transeuntes e há quem passe com a gola do sobretudo virada para cima. O vento não sopra, o frio suporta-se. São as sombras e os silêncios que incomodam quem não está habituado a observar este tipo de noite, em Lisboa.
Esta é uma história de fantasmas, para quem acredita neles. Para quem não acredita, então esta é uma história de teatro, onde o palco são as ruas inclinadas do centro histórico de Lisboa, os espectadores são os clientes e os ocasionais transeuntes que colam a orelha ao texto, ao passar. Há um actor principal, vestido de capa preta com capuz e lanterna na mão. Os atores secundários, esses, são os fantasmas.

O Contador de capa preta tem como função fazer ressuscitar os mortos de que fala, com o foco da lanterna na cara ou apontando-o para os edifícios onde eles, os mortos, terão vivido. «Foi aqui que viveu uma assassina», inicia o narrador do passeio noturno, dirigindo a luz à janela de um prédio devoluto da Baixa. A estória assume contornos de filme policial e os caminhantes escutam com atenção. Finda a narrativa, o périplo é percorrido de um fôlego, sem parar. E no fim de cada história, o Contador grita ou sussurra um “Sigam-me”. E o grupo segue-o, pois claro.
É assim que a Ghost Tours trabalha. À noite, para portugueses ou estrangeiros, fugindo da confusão do dia, onde turistas e lisboetas se atropelam numa cidade cada vez mais concorrida. De Inverno, o cenário fica mais carregado, o frio aguça a imaginação e, até em dias de chuva, Lisboa parece ficar mais assustadora. O motivo do périplo é o de contar narrativas de crimes e de criminosos, lendas e acontecimentos horripilantes da História de Lisboa.

O Contador leva o grupo pela colina do Castelo acima, e, na Sé, não obstante os gritos incomodados de um sem-abrigo, a atmosfera de macabro adensa-se. O céu está mesmo preto e a catedral profundamente amarela, a lua cheia a um canto. O Contador está entusiasmado e relembra o dia em que um bispo foi lançado da torre da Sé, em pleno século XIV: «Conta-se que os seus restos mortais foram arrastados pela cidade e comidos pelos cães», vocifera. Os impropérios do sem-abrigo persistem, mas o Contador não desmancha o seu papel. A sua voz é colocada e parece ecoar no silêncio da rua. Não admira que incomode os que já dormem, apesar de não passar das dez da noite.
A subida acentua-se, desfilam fantasmas de assassinos, já há muito falecidos, e de suas vítimas, e é no Pátio do Carrasco, a caminho de Santa Luzia, que o ambiente chega a gelar. E de repente, o grupo transporta-se para um átrio quadrangular do século XIX, com casinhas baixas e janelas pequenas, carreiros intermináveis de plantas e vasos, roupa estendida nos varais, capachos à porta e gente que, embora ali viva, não vem espreitar, mas respira do outro lado da parede. A história é a de Luís Negro e o nome do pátio diz tudo. Adiante.

Sangue, suor e gargalhadas
O Contador segue agora o fantasma de Manuela de Zamora, uma ladra, pelas Escadinhas de São Crispim. Mais uma vez, ninguém vem à janela por mais que o Contador berre os feitos da mulher. O grupo arfa da subida, mas constata, com surpresa, que não conhecia aquele trajeto que desemboca à porta do Chapitô. A ladra ficou para trás, mas, uns minutos à frente, encontra-se uma outra, Giraldinha, agora nas Escadinhas de São Cristóvão. As pinturas murais alusivas ao Fado acompanham a narrativa, enquanto um grupo de raparigas passa e estaca, olhando o Contador com curiosidade. Querem seguir as palavras que captaram no ar, mas o mensageiro já voa pela Rua de Santa Justa, com a capa a ondular.

Com a Praça da Figueira no horizonte, o grupo de caminhantes noturnos exibe alguma expetativa, agora que começa a entrar em território mais conhecido. Com o Castelo de São Jorge pendurado no céu, numa faixa amarelada de muralhas, o Contador aproveita para relembrar que Lisboa tem lendas fundadoras, e que Ulisses protagonizou uma delas.
A história perde dramatismo, mas ganha romance e fantasia, para contrabalançar a sílaba tónica dada aos crimes e assassinatos. Em torno, vislumbram-se rostos da noite, habituados, porventura, a homens de capa preta. Rapazes deslizando em skates, aos pés do Mestre d’Avis. O Contador persiste no fito de aterrorizar transeuntes: senhoras e casais a passear, ou à espera de qualquer coisa no carro, turistas deambulantes. Os sustos são genuínos e parece que no passado o Contador terá mesmo provocado gritos de pavor que terão acordado meia Baixa Pombalina, no entanto a maioria destes sustos acaba por transformar-se em gargalhadas bem-dispostas.

Tempo para aterrorizar um pouco mais os caminhantes, com os fantasmas dos cristãos-novos massacrados junto ao Rossio. A luz da lanterna incide sobre a porta da Igreja de São Domingos, fechada. Os pormenores violentos das mortes provocam esgares de reprovação nos rostos dos participantes. Já houve quem tivesse reclamado do sadismo que o Contador emprega ao relatar o Massacre dos Judeus de 1506, mas é esse o propósito, afirmará, mais tarde, o narrador.
O périplo termina da pior maneira. Junto à estátua de D. Pedro, no Rossio, o Contador apresenta a escrava Catarina Maria que foi acusada de ser bruxa pela Inquisição. A imaginação dos espectadores arde com o relato da sua tortura e da sua morte, em auto-de-fé, numa fogueira anormalmente lenta. Histórias de outros tempos, mas que se tornam reais quando se olha para uma das fontes da praça e, em vez dela, se distingue claramente uma pira ardente e uma mulher que morre sufocada com o fumo e o pânico.

A noite continua enigmática, uma hora e meia depois. A lua cheia rodeia-se de uma névoa escura e o som das solas dos sapatos persiste no horizonte auditivo. No Rossio, o Contador sorri, por uma última vez, e sem que diga “Sigam-me”, desaparece, rodando sobre si, como se, na verdade, nunca tivesse existido.
Despindo a capa

Afinal, o Contador não desapareceu. Deu a volta à estátua de D. Pedro e regressou, sem a capa. Chama-se André Raposo e é um dos atores que colaboram com a Ghost Tours. O jovem alentejano, estudante de Publicidade e Marketing, mas ator profissional a tempo parcial, começou a trabalhar como contador de histórias para a empresa após ter conhecido a autora dos textos, a jornalista Inês Lampreia. O projeto, fundado em 2011 pelas empresárias Rita Ferreira e Sandra Ferreira, de 26 e 29 anos, foi a oportunidade que faltava no currículo de André e de outros três atores, que começaram a fazer as “tours”, em fevereiro de 2012.

Fazer teatro na rua tem sido um desafio para André, que enfrenta, sempre que veste a capa preta, todo o tipo de situações. «Tem sido interessante para mim trabalhar a reação das pessoas, tanto do público como dos transeuntes com quem vou interagindo. À noite, a cidade muda muito. É bom trabalhar os estímulos», explica o ator.
Os sem-abrigo são os que mais se incomodam com a passagem dos atores pelas ruas. Houve, inclusive, uma noite em que um sem-abrigo começou a insultá-lo em francês, mesmo aos seus ouvidos. São provocações que pretendem desconcentrar o ator, mas André afirma: «Tenho a personagem muito bem construída dentro de mim e o Contador de Histórias não se importa com o que lhe dizem».

Nunca lhe aconteceu lançarem-lhe água de uma janela, até porque os que por ali vivem já estão habituados aos relatos macabros do Contador. Já com os clientes, a história pode ser outra. Numa das “tours”, uma senhora esteve quase a desmaiar, na Sé: «Estava com tensão baixa, mas a história do bispo também não ajudou nada», diz André. De acordo com o ator, a reação entre portugueses e estrangeiros tem sido idêntica, mas confessa que não esperava tanta adesão do público português a este tipo de atividades.
André Raposo conhece bem Lisboa e acaba por levar as pessoas por caminhos que geralmente não conhecem, para o percurso se tornar mais interessante. A chuva não é um obstáculo e é vista como um suplemento. «Já fiz uma tour à chuva e funcionou muito bem. A cidade fica mais vazia, mais escura e mais assustadora», conclui André. «A minha personagem não tem medo de nada, mas eu tenho».

www.ghost-tours-portugal.pt (e também no Facebook)

Tours diárias de 1h30, em português ou inglês, com início às 21h30, mediante marcação prévia. Número mínimo de seis pessoas.

domingo, 4 de novembro de 2012

Lisboa, Centro de Estórias

O título desta crónica podia ser “pérolas a porcos”, mas não, não tem nada a ver. De facto, gostava de falar das pérolas, porque de facto existem, e elas são, por um lado, as narrativas fabulosas e por vezes maçadoras da nossa História. Ou então, noutra perspetiva, as pérolas podem ser os extraordinários efeitos especiais e cénicos que Lisboa Story Centre exibe. Ou seja, dois bons motivos para que se visite o dito lugar, em plena praça nobre do Terreiro do Paço. No entanto, ficaria constrangida se tivesse de associar a expressão “porcos” quer aos organizadores da exposição quer aos destinatários da mesma. Desta feita, mude-se o adágio, talvez para “dar nozes a quem não tem dentes”. Mais uma vez, refletindo, talvez não se adeque. Se as nozes forem as estórias, quem é que não tem dentes?
Outra vez, do princípio. Estórias e não histórias. O espaço é interessante e tem, como já referi, uma parafernália de maquetes, filmes, engenhocas de realidade virtual, manequins e cenários de quase tirar o fôlego. Não é normal visitar uma exposição tão louca, tão ousada e tão moderna em Lisboa. E para quem vem visitar, é natural que fique fascinado, caso consiga atinar à primeira ou segunda com os aparelhómetros do audioguia. A exposição é mais ou menos circular e só falta mesmo ter uns carris no chão para os visitantes poderem deslizar pelo espaço, a bordo de um batel mecanizado, tipo Casa dos Horrores da saudosa Feira Popular.
É possível “navegar” pelo Lisboa Story Centre, descobrindo as suas etapas, respeitando o tempo das vozes que nos sussurram aos ouvidos, ainda que por vezes tenha duvidado se não me terão dado um audioguia para crianças. Não, pelos jeitos, era mesmo assim. As vozes encenadas, o diálogo entre o puto parvo que nunca percebe nada do que o narrador diz e o próprio narrador, o Marquês de Pombal a falar como se fosse um taberneiro, o sotaque manhoso francês de um Voltaire que fala sobre o terramoto, são apenas uns arranhões auditivos. Passa, portanto. Como todos andam de auscultadores, penso que ninguém terá ouvido os meus ataques de riso.
Continuando o percurso, por vezes estranhamente anacrónico e sensacionalista (caravelas, Passarola de Bartolomeu de Gusmão, o Miguel de Vasconcelos que é atirado da janela pelos conjurados, a inquisição e o barroco), o batel imaginário conduz-nos à verdadeira sala dos horrores. É aqui, sentados no escuro e com três enormes ecrãs, que se conta como o terramoto aconteceu. Um filme foi feito, com atores e figurantes vestidos à época, calcorreando as ruas da cidade setecentista, assistindo às missas nas igrejas. O efeito especial sonoro mais estrondoso da história da museologia portuguesa abate-se sobre os assistentes: uma espécie de trovão que faz vibrar as paredes, ou assim o imaginamos, e no ecrã, o terramoto, pedras caindo em cima das pessoas, igrejas e edifícios desconjuntando-se, gritos alucinantes que parecem não ter fim, figurantes mortos que respiram com o peito arfante ou com os olhos a piscar. O tsunami é claramente filmado na Costa da Caparica, dentro de uma água limpa, onde só boiam sapatos e se vê na margem um restinho de praia. Aqui já não me safo. As pessoas estão sem os auscultadores e ouvem o meu riso. “Que insensível!”, parecem dizer com os olhos.
Perdoem-me os porcos, as pérolas, os dentes e as nozes. Gasta-se uma quantia absurda para montar um espaço de estórias, sem que haja o cuidado de se atentar aos pormenores? Sem que se questione que o Terramoto não aconteceu em segundos, num só abalo? Que a História de Portugal também é a história da escravatura, dos autos-de-fé e de governantes absolutistas?
O riso transforma-se numa ruga de apreensão. Pois é, a consciência histórica é um mistério só desvendado por alguns. Os outros, a turba, os que passam ou os que ficam, saem felizes e contentes porque assistiram a uma exposição espetacular, cheia de engenhocas e bonecos de plástico.






Viajantes do Tempo

Reportagem publicada na revista Fugas do jornal Público a 9 de fevereiro de 2013.
(http://fugas.publico.pt/Viagens/316654_viajantes-do-tempo-a-procura-do-que-escondem-as-ruas-de-lisboa)

É a nova face do turismo na capital. Há cada vez mais lisboetas a descobrirem a história da sua cidade e mais empresas a liderarem o caminho. A Time Travellers é uma delas

Dez horas em ponto. A Casa dos Bicos parece convidar um grupo de 12 pessoas a entrar, mas este não arreda pé dos degraus de entrada. Espera os passageiros atrasados para que o percurso se inicie. A tripulação está a postos, munida de mapas e de histórias, que transporta na mochila. Já estão todos. Bem-vindos a bordo. A viagem vai começar.
Raquel Policarpo e Inês Ribeiro, guias deste passeio e únicos elementos da tripulação, vestem t-shirts cor-de-laranja. É a cor que as caracteriza neste universo cada vez mais polvilhado de agências de animação turística em Lisboa. Pés e imaginação ao caminho, iniciam a viagem pela cidade medieval e quinhentista, que começa ali mesmo, no Campo das Cebolas, e terminará séculos à frente, no miradouro da Graça.
Têm ambas 28 anos e são arqueólogas de profissão. Tornaram-se empresárias há pouco tempo, quando inventaram o conceito “Time Travellers”, uma agência que se dedica «mais especificamente ao turismo histórico e arqueológico, dentro e fora de Lisboa», esclarece Inês Ribeiro.
Na capital, fazem sobretudo três percursos: o romano, o islâmico e o medieval, seguindo quase sempre um fio condutor arqueológico. Levam os seus clientes num trajeto, onde visitam o Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, o Museu do Teatro Romano, a Sé e o Castelo de São Jorge. São os locais mais emblemáticos para se conhecer melhor a cidade antiga, mas que estão, tantas vezes, escondidos dos olhos do lisboeta transeunte.
Mas hoje o caminho é outro e desvia-se do circuito convencional. A arqueologia vai estar mais escondida. São as estórias dos locais que vão pôr a imaginação dos viajantes a funcionar. Raquel e Inês vão falar de uma muralha que já mal existe: a muralha fernandina, cuja construção foi finalizada no reinado de D. Fernando, em 1376, e que servia de delimitação da cidade. «Graças à arqueologia têm-se descoberto novos vestígios da muralha», explica Inês aos seus viajantes. Esclarece ainda que foram descobertos tanques romanos de salga de peixe nas fundações da Casa dos Bicos, durante as obras mais recentes de que foi alvo o edifício.
Raquel, mais extrovertida, começa a motivar os participantes para a descoberta, mas falham-lhe as datas, para as quais, afirma, não tem tanta cabeça. Não se recorda do ano em que a Casa dos Bicos foi fundada, mas Inês completa o raciocínio: «Foi em 1523». De imediato, um dos participantes lança, com semblante carregado: «Em que mês?», mas logo expulsa uma pequena gargalhada que as tranquiliza. Afinal, o sentido de humor é algo que se quer nestas viagens.

Alfama recôndita
Uma planta quinhentista da cidade de Lisboa torna-se uma espécie de mapa do tesouro. Inês aponta com o dedo a muralha fernandina e indica o percurso que se vai realizar. O grupo segue, então, na direção de Alfama. O objetivo é conhecer os limites orientais da velha capital.
O primeiro desembarque faz-se no Chafariz d’el Rey, cuja história remonta à época de D. Dinis e termina com a reconstrução de Lisboa, após o terramoto. Fala-se de água, das regras rígidas de utilização das bicas do chafariz, no tempo em que ainda existiam escravos e Lisboa era um recetáculo de gentes vindas de todo o mundo. Observam-se e fotografam-se pormenores.
Alfama é o bairro a atravessar, mas as voltas tornam-se labirínticas a partir do momento em que se deixam para trás os caminhos mais conhecidos. Espreita-se um troço da muralha islâmica, anterior à fernandina, junto ao Chafariz do Poeta, como quem segue pela Rua da Judiaria para o interior do bairro. E, surpreendentemente, o grupo inverte de novo a marcha regressando à orla de Alfama.
Mais uma vez se descobrem histórias e recantos escondidos do lisboeta comum. O Largo das Alcaçarias surge, isolado e em silêncio, onde dois gatos se espreguiçam em cantos distintos do local. Raquel conta que foi em tempos um sítio para os nobres irem a banhos, até porque as águas das nascentes de Alfama eram conhecidas pelas suas propriedades curativas. Eram as chamadas alcaçarias, «uma espécie de Spa daquela época», brinca Raquel. Uns metros mais à frente, no Largo do Chafariz de Dentro, o grupo volta a encontrar vestígios desse passado termal.
A partir daqui é sempre a subir. O grupo de viajantes depara-se com a Capela de Nossa Senhora dos Remédios, mandada construir por pescadores, em 1517. O portal é definitivamente manuelino. A capela tem uma lenda associada, segundo a qual terá sido encontrada uma imagem de Nossa Senhora dentro de um poço, ali instalado, cujas águas se tornaram milagrosas. O grupo ouve a explicação de Raquel, mas tem dificuldade na fotografia. Um automóvel está estacionado à porta da capela.
Prossegue-se viagem. A Igreja de Santo Estêvão surge, envergonhada, entre o casario de Alfama. Um pequeno miradouro serve de pausa para os viajantes, enquanto Inês se debruça sobre a história do local. As vistas de Lisboa para o Tejo são sempre surpreendentes, parecem dizer os olhos concentrados de alguns participantes que viram as costas à igreja. Chuvisca, mas ninguém dá importância. Ainda há muito trilho para completar.
Fôlego restabelecido, pés ao caminho. O grupo estranha os edifícios quinhentistas embaulados, nas vielas estreitas, e descobre histórias de palácios. Entra, por fim, em território da antiga jurisdição eclesiástica, pelo que Raquel aconselha, com humor: «Agora portem-se bem». Os pormenores pitorescos de uma Alfama mais recôndita surgem em catadupa e até a voz de Amália Rodrigues compõe o cenário, ecoando à janela de um rés-do-chão.

Estórias e lendas
O longo trilho desemboca, para surpresa de muitos participantes, na famosa Feira da Ladra, em plena manhã de sábado. Fervilha, lotada de pessoas com os olhos postos no chão. Entre o grupo, quase todo proveniente da Grande Lisboa, há quem nunca tenha visitado esta feira, cujas origens se perdem nos tempos medievais da cidade. «As senhoras, por favor, não se distraiam, depois do passeio terminar, podem cá voltar», avisa Inês, cuja experiência lhe diz que os ouvidos se fecham às explicações, quando os olhos procuram pechinchas.
Raquel delicia-se com as estórias da História de Lisboa. Desenrola ali mesmo, no jardim Botto-Machado, em plena Feira da Ladra, a lenda associada à Igreja de Santa Engrácia. Lenda segundo a qual um cristão-novo terá sido condenado à morte por um crime que não cometeu, corria o ano de 1631. O homem, julgado em auto-de-fé no terreiro onde se construía a Igreja de Santa Engrácia, terá lançado a maldição: «Tão cedo morrer inocente como as obras desta igreja nunca mais acabarem». Certo é que a igreja acabou por não ser construída, fruto de contratempos sucessivos. Hoje chama-se Panteão Nacional e a sua cúpula espreita, resplandecente, por cima de telhados, destacando-se na paisagem.
Os viajantes transpõem as portas da Feira e alcançam a Igreja de São Vicente, que visitam, por breves minutos. À saída, esticam as pernas, sentados na escadaria branca, enquanto observam um edifício de traça antiga. Raquel desfia a narrativa “hollywoodesca” de um capitão de armada português que sobreviveu a múltiplos naufrágios e que terminou os seus dias num palácio junto ao Mosteiro de São Vicente. Aquele é o palácio. Num truque de ilusionismo coletivo, o capitão de armada vislumbra-se a espreitar a uma janela.
O périplo está quase no fim e requer um esforço adicional para subir a Rua Voz do Operário. É no miradouro da Graça que a viagem termina. Observa-se ao longe a parte ocidental da cidade, o restaurado Martim Moniz e um troço da muralha fernandina entre os novos apartamentos da EPUL. Sara, uma professora de 32 anos, viajante naquela manhã, agradece em nome do grupo: «Não é todos os dias que viajamos pela história da nossa própria cidade».
Com o som estridente dos sinos da Igreja da Graça, Raquel e Inês descansam, com os olhos postos em Lisboa. A sua viagem só agora começou.

Viajar no tempo fora de Lisboa
A Time Travellers também estende a sua ação além-capital, explorando ruínas pré-históricas e romanas, castelos, palácios, mosteiros, locais de batalhas e centros históricos, um pouco por todo o país. E se o viajante tiver a ideia de fazer um percurso que não esteja disponível na página da Time Travellers, sempre poderá lançar o desafio às duas arqueólogas, que se encarregarão de pesquisar e preparar o roteiro proposto, através da modalidade “Faça a sua História”. E quanto à logística, Inês Ribeiro tranquiliza «Para as viagens de dois dias, o preço inclui transporte, alojamento, alimentação e entradas em monumentos. O cliente não tem de se preocupar com nada».

Sugestões de passeios da Time Travellers, fora de Lisboa

O Regresso às Origens (Pré-História)
Em Portugal Sê Romano
O Reino de Portugal

Histórias de Príncipes e Princesas
Cidades com História

Faça a sua História
Passeios para grupos escolares e empresas

http://www.timetravellers.pt/
outubro 2012
 


Mariza a Presidente!




Gritavam-se alvíssaras à República, lançavam-se chapéus de feltro ao ar, vislumbravam-se tempos gloriosos que punham fim a mais de sete séculos e meio de monarquia em Portugal. Foi assim a 5 de outubro de 1910, quando a bandeira branca de um diplomata alemão, em plena Avenida da Liberdade, fez a turba republicana acreditar que a fação monárquica se rendia, horas longas após as barricadas da Rotunda. Caía o regime, o jovem rei fugia no seu Iate Amélia, com a mãe e a avó, a bandeira azul e branca era substituída pela verde e vermelha que viria a caracterizar um povo durante cerca de 100 anos. Juraram-se então alterações estruturais na Educação, nas Leis, no Trabalho, nas Finanças, nos Direitos dos Cidadãos. Criou-se uma nova Constituição, surgiu o Escudo, instituiu-se A Portuguesa como hino nacional, canção que servira os interesses do Partido Republicano aquando do Ultimato Inglês, em 1890. E vieram os presidentes, uns atrás dos outros, em fila indiana, e os governos, e os bigodes de todos os políticos que fizeram de Portugal a mais jovem República da Europa, aberta a novos ideais, novos conflitos mundiais, novos atentados à bomba. Em suma, a uma confusão tão grande ou maior como a que “reinava” em Portugal, anos antes, mas com a magnânima diferença de que agora quem detinha o poder era a res publica, a coisa pública, o que é do povo.
Foi essa a esperança que permaneceu no código genético do português do século XX. Um esgar irónico de incredulidade pode transportá-lo para o pessimismo que, dizem, o caracteriza, mas é esse resquício do que concebe ser a República, e mais tarde a Democracia, que tem feito saltar a tampa a um povo que é, aparentemente melancólico e apático, mas que no final de contas tem estado apenas adormecido.
Os recentes acontecimentos que fizeram levantar a turba “antitroikiana”, o sentimento de congregação eletrónica em torno das redes sociais, da agenda semanal de manifs, e a agridoce ilusão de que se conseguem vitórias, chumbando leis, estão precisamente a despertar o que de mais republicano existe nas gentes portuguesas. A união sente-se além-fronteiras, espraia-se para os países mediterrânicos, onde, explica a História, a vida sempre foi mais difícil do que no norte.
A memória da República, se bem que resgatada em todo o seu fulgor há dois anos com sucessivas exposições e deambulações comemorativas que até a um amante de História tiravam o fôlego, vai perdendo reconhecimento por parte das autoridades da “República” Portuguesa e ninguém faz nada por isso. O desaparecimento do feriado é um anúncio surdo de que algo terrivelmente obtuso se passa com a ideologia que comanda o país. Um desrespeito pelas almas de Cândido dos Reis, que cometeu suicídio pensando erradamente que a revolução fracassara; um insulto a Machado dos Santos, cujo cadáver deve andar num redemoinho impressionante dentro do seu caixão.
Em vez disso, de um feriado, de uma agenda cultural que fervilhe de atividades alusivas à República, de filmes e documentários que expliquem aos cidadãos como se construiu o seu país no início do século XX, persiste a parte mais chata. O discurso de mais um bigode, agora escondido da verdadeira res publica, com medo de intervenções antitroikianas, mas cometendo gafes atrás de gafes, exibindo sorrisos cada vez mais amarelos, e aquele já tão característico silêncio ensurdecedor que faz do símbolo máximo da República o seu principal opositor.
Não houve indícios de insurreição, apenas a de uma senhora desesperada que logo foi amordaçada para que o protocolo não se desmanchasse. Uma cantora lírica que pela voz tentou acordar quem a ouvia. Durante o dia, não se viu a República em lado nenhum, não se sentiu o seu cheiro a revolução, não se ouviu A Portuguesa, não se gritou Vivas à dita cuja. Era o último feriado e esse tinha de ser bem aproveitado, com os comandos estendidos à televisão e os centros comerciais à cunha.
Curiosamente, a turba acudiu a Mariza, à noite. Único marco das comemorações em Lisboa, cidade que fez nascer a República. Eram milhares no Martim Moniz, crianças, jovens, velhos, cães, famílias inteiras e grupos de amigos. Gente que procurou no seio da Mouraria os ecos da sua identidade coletiva mais antiga, batendo o pé aos ritmos mais gingados dos fados de Mariza, emocionando-se com os trinados tão lusos das guitarras estridentes. E todos, mesmo os que para lá foram conviver e aproveitar a “borla” do ano, celebraram, sem saber, uma República que é a voz do povo, unido, forte, batendo o pé ao mesmo tempo, num ritmo compassado, quer seja ao som d’A Portuguesa, do Grândola Vila Morena, ou mesmo do Gente da Minha Terra.
6 de outubro 2012