sábado, 16 de novembro de 2013

A minha aldeia, naquela madrugada, estava a desmantelar-se aos bocados



Tinha 11 anos no dia 25 de Agosto de 1988. Vivia no sótão do número 59 da Rua Nova do Almada e a minha família era a única a viver no lado dos números ímpares da rua. Com 11 anos, mal temos consciência do quão cruel pode a vida tornar-se, numa questão de minutos. De como não estamos à espera de sermos arrancados da cama às 4h30 da manhã sob a ameaça de um vulcão cuspidor de fogo. Essa foi a minha visão inicial do que aconteceu naquela madrugada de dia 25. Tomada pelos violentos pesadelos que estava a ter nessa noite por causa de um filme - que não devia ter visto umas horas antes -, os gritos da minha mãe pareciam uma extensão do mundo dos sonhos. O que eu via através da janela trapeira do nosso sótão era uma chuva de fogo que caía sobre as telhas da minha casa. Um cenário sobrenatural em pleno Chiado, em plena Baixa de Lisboa. O vermelho contrastava com o negro da noite. O som tenebroso das explosões enchia os nossos ouvidos e por momentos, paralisados pelo medo, não conseguimos descortinar o que estava a acontecer. 
No andar de baixo, da varanda que dava para a rua, vimos então a explicação. Nos prédios da Rua do Carmo, visíveis da nossa varanda devido à curva que a rua faz, víamos o reflexo das chamas que consumiam já o edifício dos Armazéns do Chiado. Ou assim pensávamos nós. Na verdade, o incêndio já tinha atravessado para o outro lado da Rua do Carmo. Eram as explosões que depositavam labaredas nos telhados dos prédios vizinhos. O que se passou de seguida foi um turbilhão de acções e decisões. Os meus pais perceberam que, enquanto os bombeiros estavam a combater o incêndio na Rua do Carmo, era preciso ficar e apagar o fogo que caía no telhado. Tapetes e carpetes foram encharcados em água e estendidos nas telhas. Durante horas, pai e mãe ali permaneceram, apagando pequenos focos de incêndio, gritando aos vizinhos que fizessem o mesmo. Eu e a minha irmã, de 15 anos, tínhamos outra missão: abandonar a nossa casa e transportar connosco tudo o que fosse considerado imprescindível, neste caso, documentação, dinheiro e algum ouro. Tudo o resto ficou para trás, incluindo os nossos pais e a nossa cadela.

Pelas cinco horas da manhã cruzámos a Baixa, na direcção do Castelo. A escuridão, o cheiro intenso, o vermelho que irrompia dos Armazéns do Grandella ficaram gravados na minha memória como um ferro em brasa. A minha aldeia desmantelava-se aos bocados. O recheio dos edifícios era agora uma amálgama de lixo a arder. Os bombeiros, super-heróis que jamais esquecerei, lutavam com as forças que tinham, enfrentando obstáculos, o vento, o calor insuportável.

Os meus pais foram expulsos de casa pela polícia, durante a manhã, mas só por volta do início da tarde o incêndio foi dado como controlado. O vento mudara de direcção. A minha casa ficou incólume, a apenas umas dezenas de metros do fogo. Os nossos corações, não.
Há coisas que as efemérides não recordam. O incêndio tornou-se um marco histórico documentado pelas imagens e pelas reportagens dos jornalistas. Há 25 anos que se fala do fogo que destruiu 18 edifícios e que colocou no desemprego um sem número de pessoas. Fala-se da sua reconstrução, do plano de Siza Vieira, da péssima ideia das floreiras da Rua do Carmo - que impediram os bombeiros de combater o fogo com maior eficácia. Recordam-se as imagens pontuadas pelo cinzento e o amarelo/laranja de um conjunto de edifícios a arder ou a transpirar de fumo, com o rescaldo.
Há coisas que as efemérides não recordam porque a comunicação social não é uma criança de 11 anos. Não recordam, nem conseguem recordar, que essa criança cresceu numa aldeia queimada durante os cinco ou seis anos seguintes. Que os prédios foram entaipados e se construiu um túnel - o túnel dos horrores - que ligava a Rua Nova do Almada, a Rua do Carmo e a Rua Garrett. Que não era permitido caminhar junto aos escombros, embora os víssemos claramente. Não recordam as implosões de dois prédios: um ruído surdo e uma onda gigantesca de pó. E depois, como se fossem dentes arrancados, os buracos do "Eduardo Martins" e da "José Alexandre". Não conseguirão recordar nunca o cheiro, que permaneceu sempre, entranhado no nariz - e um cheiro de incêndio urbano é muito diferente de lenha a arder -, as memórias visuais dos restos mortais das lojas do Chiado, dos ferros contorcidos, das janelas que permitiam ver o tecto azul do céu. Um cenário de guerra.
Apesar de as recordações serem dolorosas, lembro os tempos antes, durante e depois do fogo com a mesma ternura. Já não vejo no Natal as montras dos armazéns do Chiado decoradas com os brinquedos mecânicos que faziam as minhas delícias. Já não assisto aos escorreganços das senhoras chiques que iam fazer compras no Chiado, ali mesmo na esquina da minha rua. Quase tudo mudou no Chiado. Mas sempre que lá passo, continua a ser a minha aldeia.

25.08.2013

Como doze freguesias se tornaram uma

de Catarina Sampaio Rolim e Catarina Durão Machado, Revista 2, 15 setembro 2013

A original designação da Sé de Lisboa dá nome a uma das novas freguesias da capital: Santa Maria Maior. A maior fusão a nível nacional agrega 12 juntas do centro histórico. O que vai mudar?
À porta do n.º 116 da Rua dos Remédios, em Alfama, Mário Soares de Almeida espreita o movimento. Os seus óculos de lentes grossas denunciam as grandes dificuldades de visão do comerciante de 86 anos. Está emoldurado pelos panos de cozinha que tem pendurados à porta da sua loja e que exibem galos de Barcelos em cores diferentes.
A rua é uma das fronteiras entre a futura freguesia de Santa Maria Maior e de São Vicente. Mas do traçado, Mário Soares de Almeida pouco sabe. Diz apenas que os candidatos já por ali passaram a distribuir folhetos. Recorda-se que um deles tem um mapa e vira as costas para o procurar. "Esse senhor parece que é o chefe que vai juntar as freguesias. Ora leia", diz o lojista, entregando uma folha dobrada em três. Confirma-se que o candidato do PS já por ali passou e deixou mapas para a população se orientar.
A partir de 29 de Setembro, 12 das mais antigas freguesias de Lisboa e do país deixarão de existir para se fundirem numa só: Mártires, Sacramento, Madalena, Santa Justa, Sé, Santiago, São Cristóvão e São Lourenço, Castelo, Socorro, São Miguel, São Nicolau e Santo Estêvão. A maioria está situada nos bairros de Alfama e da Mouraria, duas no Chiado e três abarcam a totalidade da Baixa Pombalina. Com a nova freguesia, serão 11 cargos de presidente de junta que deixarão de existir também. A concorrer ao lugar de comando em Santa Maria Maior estão Lurdes Pinheiro, da CDU, actual presidente da Junta de Freguesia de Santo Estêvão (Alfama), António Manuel, através da coligação PSD/CDS/MPT, e que preside a autarquia de São Nicolau (Baixa), e o socialista Miguel Coelho, deputado municipal.
É a maior agregação de freguesias em Portugal, mas nem por isso será uma megafreguesia, até porque o número de eleitores - 13 mil - continuará a ser baixo, comparado com o de Marvila, com mais de 36 mil. Geograficamente, também não será a maior - Olivais e Benfica são as mais extensas. Mas é a que concentra mais património histórico e, por consequência, mais turismo. Não só nas praças - Terreiro do Paço, Rossio, Praça da Figueira, Restauradores, Martim Moniz, Largo do Município - como nos bairros antigos, sobretudo Mouraria, Sé e Alfama.
O espaço a que corresponde Santa Maria Maior testemunhou o nascimento e a evolução da cidade de Lisboa. Fenícios, romanos, visigodos, muçulmanos e cristãos moldaram, ao longo de mais de 2500 anos, o espaço que viria a ser a capital portuguesa, cujo acesso ao rio traria recursos naturais, comércio e uma posição geoestratégica que permitiu que as principais estruturas de apoio aos descobrimentos se implantassem ali. Lisboa cresceu, assim, em torno da colina do Castelo. Os seus limites seriam assegurados ora pela cerca moura (construída por volta dos séculos IV ou V) ora pela muralha fernandina (século XIV) - que acabará por delinear as fronteiras do que será hoje Santa Maria Maior.
Segundo o geógrafo João Seixas, a capital mudou muito nos últimos 30 anos. "O centro histórico de Lisboa tem sido despovoado [devido] à dispersão urbanística", comenta à Revista 2. Mas Santa Maria Maior será "uma freguesia de diversidade", afirma. "É muito importante que cada bairro de Lisboa, incluindo a própria Baixa, tenha diferentes classes sociais, etárias e económicas... A maior riqueza de qualquer cidade é a sua diversidade."
A pedido do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), António Costa, João Seixas coordenou, juntamente com o investigador Augusto Mateus, o estudo Qualidade de Vida e Governo da Cidade (2010). Os inquéritos indicaram que 82% da população estava de acordo com a reforma das freguesias lisboetas. "Segundo o inquérito que fizemos, quase ninguém estava satisfeito com o seu governo de proximidade... Há uma fraquíssima identificação dos lisboetas com as suas actuais freguesias", continua João Seixas.
A lei da Reorganização Administrativa de Lisboa (apresentada pelo PSD e PS) foi assim promulgada em Novembro do ano passado, 54 anos após a última reforma do género na cidade (mas em sentido inverso), que aumentava de 43 para 53 as freguesias lisboetas. A partir das próximas eleições autárquicas, a 29 de Setembro, serão reduzidas para 24 - um número só comparável ao verificado em meados do século XVI. O que justifica uma lei própria para Lisboa, face à reorganização administrativa nacional, são as condições específicas da capital enquanto grande área urbana - tal como estabelece a Constituição.
O encolhimento de 53 para 24 destas autarquias locais resulta sobretudo de um critério demográfico que visa equilibrar o número de população residente em cada freguesia, permitindo uma acção autárquica mais eficaz. Ou seja, já não fará sentido manter uma freguesia com menos de 400 eleitores, como a dos Mártires (a mais antiga da Lisboa cristã), quando existem freguesias com mais de 36 mil eleitores.
Não é isso que pensa Luísa Silva, de 69 anos, moradora em Alfama. "Para mim, vai ser sempre freguesia de Santo Estêvão", afirma, apoiada numa canadiana, dentro da loja de flores do n.º 79 da Rua dos Remédios. Precisa de parar para descansar enquanto sobe a rua, e aproveitou para pôr a conversa em dia com a florista, Ermelinda Carapinha, de 49. Já ouviram falar da nova freguesia e confirmam que os moradores estão apreensivos com a mudança. Ouvem dizer que vão ficar sem os serviços da actual junta, sem a carrinha que transporta os velhotes, sem a sua presidente mesmo ali ao pé. Luísa Silva está inconsolável: "Que juntassem São Miguel e Santo Estêvão ainda concordo, agora juntar-nos lá para a Sé..."
O principal objectivo da nova reorganização administrativa de Lisboa passa por uma transferência de competências da câmara para as freguesias. De acordo com o estudo encomendado pela CML há quatro anos, são essas competências que vão passar a dotar as autarquias de um maior poder e autonomia na implementação de serviços. Ao fazê-lo, a CML terá de transferir orçamento, meios técnicos e humanos proporcionais à soma das freguesias agregadas. Simultaneamente, o objectivo será também o de reorganizar as funções internas da câmara.
Para João Seixas, é necessário "aproximar os espaços políticos de Lisboa dos espaços das questões", ou seja, reforçar a proximidade entre eleitores e eleitos, contribuindo para a eficácia do poder local. O que poderá levar o seu tempo. Com base no exemplo europeu, o académico esclarece que este processo de delegação de competências pode demorar o equivalente a "dois ou três mandatos", isto é, oito ou 12 anos.
Ainda é cedo para determinar com certeza o que vai mudar na nova freguesia. A CML distribuiu por todas as 53 freguesias lisboetas pequenos guias com informações sobre as alterações que as eleições vão trazer a Lisboa, sobretudo no que às novas competências das juntas diz respeito. Mas a florista Ermelinda Carapinha acusa: "Isto não vai ser uma junta de freguesia, vai ser uma minicâmara."
Em Alfama, pouco importa para a população se as ruas vão passar a ser lavadas por pessoal da junta ou da câmara, ou se será preciso pedir uma licença num sítio ou no outro. São os serviços a que as pessoas se habituaram que mais preocupam os habitantes destes bairros, onde as colinas íngremes e estreitas impossibilitam a existência de uma rede de transportes públicos. Em freguesias como Castelo, Santiago ou São Miguel, nas quais praticamente um terço da população é idosa, muitos dos habitantes contam com o apoio das suas juntas de freguesia, que pode traduzir-se em postos de enfermagem, consultas de dentista, assistência social ou numa carrinha que transporta os idosos para o centro de saúde. E Luísa Silva sente o receio de perder tudo isso: "Tiraram os correios daqui e agora tiram a junta de freguesia, fica aqui um bairro sem coisa nenhuma, só de velhos. Sentimo-nos abandonados."
O orçamento previsto para cada uma das novas 24 freguesias também é um dos pontos que suscitam dúvidas na reorganização administrativa: mais de 4.930.000 euros é quanto está destinado a Santa Maria Maior para o primeiro ano de mandato, quando a limítrofe freguesia da Misericórdia (que juntará Encarnação, Mercês, Santa Catarina e São Paulo) recebe quase menos dois milhões de euros para um número muito próximo de 13 mil eleitores. De todas as freguesias de Lisboa, Santa Maria Maior é a que recebe mais dinheiro.
A candidata pela CDU, Lurdes Pinheiro, não compreende o critério de uma distribuição que lhe parece injusta. "Se for para intervir como deve ser, o dinheiro não chega. Precisávamos de três vezes mais", aponta.
António Manuel, candidato do PSD, avalia que o total "está perfeitamente ao alcance", até porque acredita que uma boa gestão não precisa de muito dinheiro e é isso que tem feito ao leme da Junta de São Nicolau, nos últimos oito anos. Miguel Coelho (PS) também concorda com o valor e justifica-o: por um lado, a "centralidade" da freguesia agregadora, que tem as praças mais emblemáticas, o que também "encarece o resultado final em termos de manutenção". Por outro, uma "população flutuante muito próxima do meio milhão de pessoas" também desgasta o espaço público, originando despesa.
Nas suas intenções, os três principais candidatos divergem em alguns pontos, mas são unânimes ao reiterarem que a proximidade é a maior preocupação de uma junta de freguesia. Uma das formas de se se salvaguardar essa relação é mantendo os funcionários que trabalham para as 12 juntas. "As pessoas têm de ficar com a sua ligação no bairro. É com eles [os funcionários] que falam todos os dias", defende Lurdes Pinheiro, a presidir a Santo Estêvão há 12 anos. António Manuel e Miguel Coelho concordam. "Aquela relação de proximidade, física até, na nova freguesia de Santa Maria Maior não se vai perder", afirma o candidato socialista.
António Manuel assegura que pretende conservar os postos de trabalho, mas já Lurdes Pinheiro questiona o realismo da medida: "E depois, vindos os funcionários da câmara, como é que vai ser?" E teme que as juntas não tenham voto na matéria quanto à transferência dos recursos humanos. Contudo, manter os funcionários do quadro de todas as autarquias é uma garantia legal e um respirar de alívio para muitos fregueses. Miguel Coelho afirma: "Todos eles serão úteis e terão que fazer."
Uma funcionária de uma das 12 juntas, que pediu para não ser identificada, confessa que não está com medo de perder o emprego, mas que ainda assim a assusta a indefinição de não saber onde vai trabalhar, com quem e se perderá o estatuto que entretanto adquiriu no local onde trabalha há mais de 25 anos. "Aqui faço de tudo um pouco, apesar de pertencer ao pessoal da limpeza. Em Santa Maria Maior, de certeza que não me vão pôr atrás de um computador ou a atender telefones."
Com a manutenção de tantos funcionários, resta também saber se as instalações das antigas juntas se vão manter abertas e, com elas, os serviços que são prestados. É uma decisão que pode afectar não só os residentes, mas também os que trabalham naquelas zonas, sobretudo na Baixa e no Chiado, e que contam com os ATL das juntas para deixar os filhos depois da escola, situação que acontece, por exemplo, na Junta de Freguesia dos Mártires, cuja população flutuante é sobretudo de trabalhadores na área. Para além disso, há um conjunto de actividades que são desenvolvidas pela junta, como desporto, línguas ou informática, que podem estar em risco.
Mas pelo menos durante um ano é certo que irão manter-se abertas as actuais instalações das juntas, nem que seja como delegações da futura freguesia. Esta foi uma decisão unânime da comissão instaladora, formada pelos 12 actuais presidentes e que se tem vindo a reunir ao longo dos últimos seis meses para preparar a transição. Quem não participa nas reuniões quinzenais da comissão é Miguel Coelho, que não preside a nenhuma junta. Mas não está preocupado, até porque é regularmente informado pelos seis presidentes do PS que têm assento na comissão instaladora. Conhece portanto o "ritmo de trabalho" e o que "vai sendo discutido", assegurando que, na sua experiência de deputado municipal, nada lhe "é estranho do que acontece numa junta de freguesia".
A cargo da comissão instaladora está também a definição do local da sede da freguesia, embora esta não seja uma questão consensual entre os candidatos. A candidata da CDU vê o funcionamento da futura sede como "uma espécie de pequena Loja do Cidadão", mas nada adianta sobre o local, tal como António Manuel, que desvaloriza a questão por ser "uma sede administrativa". O local mais provável é o edifício do Elevador do Castelo, na Rua dos Fanqueiros (inaugurado no dia 31 de Agosto). "O presidente da câmara já tinha falado nisso informalmente. Pessoalmente, acho muito bem", afirma Miguel Coelho, o candidato socialista.
A localização da sede não é um detalhe para a população. Luísa Silva aponta para a sua canadiana e deixa o recado: "Se tiver de ir votar à Sé, não vou de certeza! Não vou eu nem vai a grande maioria das pessoas de Santo Estêvão."
Há muitas mourarias", diz-nos Pedro Santa Rita, da Associação Renovar a Mouraria, num passeio pelas ruas onde o fado nasceu. O bairro foi-se desenvolvendo ao longo dos séculos, criando zonas com tradições históricas diferentes: a "baixa Mouraria" pertence à freguesia do Socorro; a "alta Mouraria" a São Cristóvão e São Lourenço (onde se instalou uma população a viver à sombra de grandes palacetes); o Martim Moniz e a Rua da Palma - zonas mais comerciais - pertencem a Santa Justa. Outras franjas do bairro abrangem ainda as freguesias da Madalena, Graça e Anjos.
Na esplanada d"A Parreirinha, Vitorino Silva, de 62 anos, e Emílio Castro, de 61, vêem os turistas passar pela Rua da Guia. Vitorino defende: "O problema está na descredibilização da classe política aos olhos do povo." Admite que no fim das campanhas eleitorais, a distância entre eleitos e eleitores acentua-se e, talvez por isso, "a maior parte das pessoas na Mouraria" não ligue "nenhuma à nova freguesia". Emílio concorda com Vitorino quanto ao alheamento dos moradores: "Se perguntarem à maior parte das pessoas do bairro quem é a presidente da junta de freguesia, ninguém conhece."
Em freguesias como Socorro, onde 40% da população residente é de naturalidade estrangeira, ou Santa Justa, onde chega aos 35%, o risco de abstenção é elevado, já que os imigrantes só poderão votar nas autárquicas se tiverem visto de residência e se houver reciprocidade no país de origem (ou seja, se os portugueses puderem votar nesses países). Também os jovens que já nasceram no bairro não têm por hábito ir às urnas. "80% da juventude não vota, eu sei porque costumo ir para as mesas de voto", conta Emílio. O morador reconhece que a gente do bairro tem uma maior proximidade com Pedro Santa Rita e Inês Andrade, da Renovar a Mouraria - projecto iniciado em 2008 para reabilitar o bairro -, do que com as instâncias políticas.
N"A Parreirinha, a proprietária Cristina Correia, 44 anos, passa os dias a cozinhar. De avental sujo e vozeirão potente, baixa o tom de voz para dizer: "Eu concordo com a junção das freguesias, não concordo num âmbito tão grande. Se tivessem juntado uns bairros mais pequenos, teria sido melhor." Uma Junta de Freguesia da Mouraria faria mais sentido? "Com esse nome ou outro, tanto faz, o que acontece é que eu acho que davam mais atendimento a esta zona toda", conta. "É que no fim de contas os gastos são sempre os mesmos. A única coisa que vai deixar de haver é tantos presidentes", afirma Cristina.
O bairro é uma amálgama de habitantes que já nasceram na Mouraria - ou que lá se instalaram há décadas -, de imigrantes (asiáticos, africanos e europeus), mas também de uma população mais jovem, que escolheu o bairro pela centralidade e rendas mais baixas do que noutras zonas da cidade.
Cláudia Castelo, 41 anos, trabalha num atelier de design. Mudou-se há sete anos para a Freguesia do Socorro. Acreditou que a zona estava a mudar e quis fazer parte dessa transformação. Hoje, reconhece que a presença dos imigrantes e dos seus negócios "veio trazer uma nova vida", apesar de continuar a ser "endemicamente pobre".
Mas a adaptação não foi fácil. "Ali os estrangeiros não são só os chineses e os indianos e os africanos. As pessoas do bairro tratam os que vêm de fora [mesmo os portugueses] como se fossem estrangeiros. Há ali um bairrismo superarreigado." No caso dela, ajudou ter tido uma filha. Os vizinhos "passaram a ser mais simpáticos".
Um dos problemas que se arrastam tanto na Mouraria como noutros bairros lisboetas é o da recolha do lixo, por não existirem caixotes na rua. As juntas distribuem sacos aos moradores, que depois os colocam à porta. O cheiro torna-se insuportável. Para Cláudia, o poder local não tem contribuído para a resolução do problema, nem existe entre as freguesias do Socorro e de São Cristóvão um trabalho conjunto, apesar de as duas juntas estarem próximas: "Já me aconteceu ir à Junta de São Cristóvão levantar os sacos, por ficar mais perto da minha casa, e eles não mos darem porque não pertenço àquela junta", exemplifica. Acredita que com a reforma das freguesias vai passar a haver "um olhar para os problemas muito mais global e sistémico". Uma vez que considera existir uma interdependência que une as diferentes zonas de Santa Maria Maior, defende que "é preciso entender o núcleo do centro histórico como um elemento só".
Não é o medo de perder a identidade que faz os moradores de Alfama ou da Mouraria serem contra uma fusão tão grande, até porque as noções de "bairro" e de "freguesia" são diferentes. Cristina Correia explica que a agregação das 12 autarquias poderá ter falhas porque os "problemas de junta de freguesia da Mouraria não são com certeza os mesmos problemas das juntas da zona do Chiado", por exemplo. "Eles", diz Cristina, referindo-se aos moradores do Chiado, "são diferentes de nós, não tem nada a ver". Ao contrário do que se passa na Mouraria, "eles estão mais virados para o comércio e para o turismo".
Esse "ser diferente" é algo que existe em cada bairro. Em Alfama, o dono da sapataria Ondina, Vasco Santos, de 72 anos, explicava que a nova freguesia não poria em risco a identidade do bairro. "Existe um sentimento bairrista que é natural e que vai existir sempre, enquanto nós existirmos." Também a florista da Rua dos Remédios, Ermelinda Carapinha, não tem esse receio. Mas tem outro: "O bairro mantém-se, mas não se mantém este... achego."
João Seixas salienta que uma organização identitária vai além dos limites da freguesia: "Não há marcha de Santo Estêvão ou de São Miguel, há marcha de Alfama. Há marcha da Bica, que nunca foi uma freguesia. Lisboa é uma cidade de bairros. É talvez, em termos de proximidade, o seu maior activo identitário." E acredita que isso nunca vai desaparecer.
Para o investigador, está a nascer um novo paradigma, uma nova forma de encarar o poder autárquico. Esta é uma das maiores mudanças que João Seixas vê na reorganização das freguesias. "As freguesias têm origem nas paróquias. Aquela visão do sr. presidente da junta como pároco [está a sofrer] uma mudança de paradigma. O papel será sobretudo o da liderança [política]"
O geógrafo acredita que esta é uma reforma que "vai no sentido do enriquecimento da democracia" no que toca ao poder local, e que "daqui a alguns anos as pessoas vão começar a perceber o aumento da qualidade de vida na cidade". Apesar de, segundo João Seixas, esta reforma já ter sido aplicada em todas as outras capitais e grandes cidades europeias, é preciso bom senso, ressalva. "Temos de dar passos lentos e seguros, ou seja, temos de ser conservadores no progresso."
15.09.2013

Na Polónia, os arqueólogos andam às voltas com os vampiros

em http://www.publico.pt/ciencias/jornal/na-polonia-os-arqueologos-andam-as-voltas-com-os-26977968



































As hipóteses para práticas de enterramento consideradas estranhas são várias - entre elas, a que de as 17 pessoas encontradas na Polónia com as cabeças cortadas eram vampiros. Verdade ou fantasia, esta descoberta desenterrou o antigo medo que as populações da Europa de Leste sentiam pelos vampiros
Ao longo de Julho, foram sendo desenterrados 43 esqueletos no local de construção de uma estrada na cidade de Gliwice, na Polónia. Trata-se de um antigo cemitério, que os arqueólogos julgam pertencer ao século XV ou XVI e que traz agora um mistério: 17 dos esqueletos tinham a cabeça separada do corpo, a repousar entre as pernas e as mãos. Junto à cabeça havia ainda pedras e, no caso de um deles, a cabeça repousava na dobra do braço. O que tem tudo isto de especial?
À partida, esta descoberta remete para uma época em que as pessoas acreditavam na existência de seres maléficos que o Ocidente imortalizou como vampiros. A equipa de arqueólogos encabeçada por Jacek Pierzak e Lukasz Obtulowicz, do Departamento Regional de Conservação de Monumentos de Katowice (perto de Gliwice), pôs a hipótese de se estar perante pessoas enterradas seguindo práticas antivampíricas, até porque já tinham sido anteriormente descobertas na Polónia outras sepulturas com este tipo de enterramento.
"Tudo isto servia para impedir os vampiros de regressar à vida", declarou Lukasz Obtulowicz ao jornal polaco Dziennik Zachodni. "Era uma das maneiras mais comuns de enterrar vampiros", acrescentou Jacek Pierzak. A raridade da descoberta prende-se com o facto de nunca terem sido encontrados, "num só lugar, tantas sepulturas de [presumíveis] "vampiros"", explicou Pierzak.
A prática da decapitação dos corpos - já mortos - estava ligada à crença de que muitos destes indivíduos, depois de enterrados, se desembaraçariam das suas mortalhas e regressariam para sugar o sangue dos vivos. Sem as cabeças, os supostos vampiros dificilmente conseguiriam encontrar o seu caminho de volta.
No entanto, os arqueólogos não negam outras hipóteses, como a "decapitação ter sido a causa da morte", refere ao PÚBLICO, Jacek Pierzak, o que aponta para a suspeita de que os 17 esqueletos tenham pertencido a pessoas condenadas à morte e executadas por decapitação. Até porque, não muito longe, foi descoberta uma forca, que era um local de execução de criminosos e prisioneiros.
"No início, descobrimos duas ou três sepulturas com as cabeças dos mortos entre as pernas e pensámos que podiam tratar-se de práticas antivampíricas. Mas não excluímos que podiam ser esqueletos de pessoas condenadas à morte", acrescentou Pierzak.
Embora este achado não se possa relacionar exclusivamente com "práticas antivampíricas", também não se pode ignorar a disposição dos esqueletos e a forma como foram colocadas pedras junto às cabeças - sinais que retratam, de qualquer forma, o universo supersticioso do povo polaco quanto à crença em vampiros. Era comum, aliás, enterrar-se um corpo que antes tinha sido decapitado "pela sua ordem anatómica", o que não se verificou com os esqueletos de Gliwice, defendeu Jacek Pierzak.
Assim, esta descoberta pode "estar relacionada com o facto de se querer impedir os mortos de voltar ao mundo dos vivos, o que acaba também por ser uma prática antivampírica", explicou-nos este arqueólogo.
O achado, que suscitou interesse mediático mundial por ter sido associado ao universo da existência de vampiros, não deixa de constituir um enigma para a arqueologia e a antropologia forense. É que os restos mortais têm ainda outra particularidade: quase não havia objectos com os esqueletos, o que por si não é uma situação vulgar, pois seria comum encontrar-se pelo menos os alfinetes que prendiam a mortalha dos cadáveres. A equipa de arqueologia só resgatou junto dos esqueletos um anel, um colchete e um tijolo, cuja análise permitiu dizer que os achados são dos séculos XV e XVI, "embora seja uma datação algo frágil", considerou Jacek Pierzak.
O estudo antropológico das ossadas permitirá avançar uma datação mais concreta, bem como determinar "o sexo, a idade e o historial clínico dos esqueletos", contou o arqueólogo. Os historiadores vão também juntar-se à investigação, para procurar pistas nos antigos registos de execuções, na posse da Igreja.
Os 17 esqueletos decapitados poderão ter ainda outra explicação, que confunde o mundo dos vampiros com o medo de doenças como a cólera: alguns indivíduos eram acusados de causar estas epidemias em vida, regressando após a morte para provocar mais doenças. "Há casos documentados durante epidemias, entre os séculos XVII e XIX, de pessoas com aspecto estranho acusadas de terem sido as causadoras do surto [de cólera ou peste negra]. É por isso que se exumavam os corpos e se lhes cortavam as cabeças com uma pá, colocando-as depois na zona do estômago, com pedras por cima", esclareceu Jacek Pierzak, que refere ainda a técnica de perfuração do coração com estacas de ferro ou de madeira. "Era o que acontecia quando as práticas antivampíricas ocorriam após a morte."
Crenças, lendas ou histórias de terror, em qualquer destas categorias se pode encaixar a descoberta de Gliwice, tanto mais que entre os séculos X e XIX era usual a população acreditar que tais seres existiam, sobretudo na Europa de Leste, nos Balcãs e nos países eslavos.
Acreditavam de tal forma que era comum desenterrarem os corpos semanas ou meses depois do enterro, para verificar o estado em que se encontravam. Aí pode residir a explicação para o medo irracional que as pessoas tinham de vampiros: o desconhecimento do processo de decomposição dos cadáveres, que, uma vez desenterrados, já não apresentariam sinais de rigor mortis. Vestígios de fluidos corporais ao redor da boca e do nariz fariam supor à população, imbuída de uma superstição demoníaca, de que se tratariam de vampiros que se teriam alimentado de sangue recentemente.
O estudo do folclore destas tradições é claro. "O vampiro era a antropomorfização do medo", explica Daniel Collins, especialista norte-americano em folclore eslavo, numa aula que a Universidade Estadual do Ohio divulgou na Internet.
Outras sepulturas pela Europa
A descoberta do cemitério de Gliwice não é única no cenário de práticas mortuárias relacionadas com o medo do vampirismo, durante a Idade Média e a Idade Moderna. Já em 2009, na cidade de Drawsko, no Norte da Polónia, ao escavar-se um cemitério medieval, descobriram-se três sepulturas diferentes das restantes. Dois dos esqueletos foram encontrados com foices colocadas sobre o pescoço dos cadáveres e um outro tinha as mãos amarradas e uma pedra por cima da garganta, para garantir que o morto não se levantava.
As práticas antivampíricas da colocação de objectos de ferro pontiagudos sobre os cadáveres de pessoas suspeitas de vampirismo e de pedras e lajes por cima dos corpos confirmam o medo que as populações sentiam deste tipo de entidades sobrenaturais.
A superstição, associada à histeria do medo de vampiros, tem sido atestada por várias descobertas arqueológicas, sobretudo nos países da Europa Oriental. Só na Bulgária, descobriram-se até ao ano passado mais de 100 sepulturas de presumíveis "vampiros", a maior parte em regiões rurais. Em Sozopol, uma das cidades turísticas búlgaras mais famosas do Mar Negro, encontraram-se dois esqueletos que tinham sido perfurados com estacas de ferro, prática antivampírica que os arqueólogos dizem ter sido comum até ao início do século XX, na Bulgária.
Em 2006, a descoberta do esqueleto de uma mulher com um tijolo introduzido na boca, perto de Veneza, Itália, veio dar gás à hipótese alimentada pelo folclore medieval de que os vampiros comiam as suas mortalhas para se escaparem para o reino dos vivos. O corpo da mulher, datado do século XVI, estava num cemitério onde tinham sido enterradas vítimas de peste negra.
Várias descobertas nas últimas décadas atestam outras formas de prevenir ataques de vampiros. Em 1994, um corpo exumado numa escavação arqueológica na ilha de Lesbos, Grécia, revelava que o cadáver tinha sido pregado ao caixão com pesadas estacas de ferro através do pescoço, da pélvis e dos tornozelos. Em 1991, na Eslováquia, um outro esqueleto, encontrado numa escavação numa igreja, mostrava que o corpo tinha sido cortado em duas partes, torso e pernas, e que, além das grades de ferro que reforçavam o caixão, foram colocadas pedras por cima das pernas. Pela mesma altura, seriam ainda postas a descoberto na agora República Checa 14 sepulturas cujos corpos haviam sido trespassados com estacas de metal e sobre os quais estavam igualmente pedras pesadas.
Embora a maior parte destas ossadas esteja datada entre os século XI e XVI, a explicação para o fenómeno da fobia aos vampiros, principalmente na Europa de Leste, prende-se com a cristianização destes territórios ocorrida entre os séculos XI e XII. Bruxas, espíritos malignos, entre outros seres que representariam a antítese de Cristo e que serviam igualmente como bodes expiatórios para as epidemias que atacavam as comunidades, eram assim alvo de suspeita, sendo muitos executados e outros "agarrados às sepulturas", após a morte.
O Ocidente só ficaria a conhecer as histórias dos vampiros da Europa de Leste após a anexação destes territórios pelo império austríaco, no século XVIII. O Iluminismo e a fixação no papel das tradições orais trariam a ideia da existência de vampiros aos ocidentais. No último século, os vampiros têm sido presença constante no imaginário ocidental, de que são exemplos famosos o livro Drácula (1897), de Bram Stoker, e o filme Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, cuja rodagem na Eslováquia é por sua vez revisitada em 2000, no filme A Sombra do Vampiro. Mais recentemente, a saga Twilight e a série televisiva True Blood conheceram grande sucesso mundial.
O próprio Voltaire, imbuído de curiosidade, refere o tema dos vampiros no seuDictionnaire Philosofique, de 1769, descrevendo os supostos mortos-vivos e os locais onde foram avistados. Mas, à luz da razão setecentista, o filósofo rematava: "Não sou um profundo conhecedor de teologia para expressar a minha opinião sobre este assunto. Mas, como em todos os assuntos duvidosos, é preciso tomar o caminho mais fácil." Como quem diz que o melhor é não desafiar o mundo sobrenatural.

20.08.2013

Quando os professores começam a virar-se para o estrangeiro

em http://www.publico.pt/portugal/jornal/quando-os-professores-comecam-a-virarse-para-o-estrangeiro-26967975



Só através da Cooperação Portuguesa são cerca de 1500 os docentes portugueses que trabalham por todo o mundo. Outros, muitos (não existem estatísticas), partem por conta própria. Vão à aventura, guiados pela promessa de uma estabilidade que não conseguem encontrar em Portugal
Quase todos os dias, Cláudia F., de 30 anos, enfrenta viagens de uma a duas horas e meia em estradas "com muitos buracos". Teve dificuldade em se adaptar ao clima húmido, tão diferente do seco Portugal, mas foi-se habituando quer às estradas esburacadas quer à humidade. Sente falta da "família", que escreve em letras capitais no email, e que está a quase 18.500 quilómetros de distância, em Lamego. É professora de Biologia e Geologia e está há quase um ano em Timor-Leste, na região de Baucau, a dar formação a professores.
Em Portugal, a experiência como professora limitou-se a uns quantos contratos na região de Lisboa: horários incompletos, temporários, mas também, pelo meio, experiências enriquecedoras que viveu pelas escolas por onde passou e que não puderam ser renovadas. Dois anos sucessivos sem colocação, ou com contratos cujos salários não chegavam para pagar as despesas mais básicas, levaram Cláudia F. a arriscar a última cartada: dar aulas no estrangeiro.
No caso de Cláudia, a opção até não foi a última e sim uma das primeiras: "Depois de ter deixado a universidade, quase todos os dias pesquisava na Internet sobre concursos e ofertas para África e para Timor." Curiosa por natureza, sempre teve uma "vontade imensa de conhecer outras culturas, modos de vida, formas de trabalhar". Foi numa das suas pesquisas que encontrou um concurso de professores para Timor-Leste. Foi seleccionada, depois de cinco anos a tentar.
Tal como Cláudia, outros professores começam a virar-se cada vez mais para o estrangeiro. Por meios próprios ou através da colocação via Instituto Camões, muitos destes contratados procuram novas oportunidades de vida na Internet, no Facebook, em agências de recrutamento. Ensinam um pouco de tudo, em português ou nas línguas locais, dão formação, estabelecem protocolos e acordos bilaterais.
Cláudia deixou Portugal para trás e um dia começou tudo de novo, sozinha, num país distante. As viagens, o convívio com os timorenses, o vício de fotografar paisagens e gentes são a prova de que arriscou bem. "Gosto de conversar com as pessoas, de ouvir as suas histórias reais."
Apesar de as condições de trabalho não serem as ideais e a língua ser uma dificuldade, já que muitos timorenses não falam português, Cláudia vê várias vantagens na sua estada em Timor. "O tempo de serviço é contabilizado", o que lhe permite acreditar numa futura colocação em Portugal. "A nível monetário também é positivo."
GPS com destino a Londres
Mais perto de Portugal ficou José Finisterra, de 28 anos. Licenciado em Educação Física e Desporto, só tinha passado pela experiência de dar aulas de Educação Física nas Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC), no 1.º ciclo.
Há dois anos que José Finisterra concorria a "inúmeras ofertas de emprego, sempre sem sucesso", depois de ter concluído o mestrado em Actividade Física Adaptada. "Fui para Londres sem nada assegurado, apenas casa para ficar nos primeiros tempos", explica José, que aproveitou a ida de um amigo para a capital britânica para se instalar com ele, "pagando apenas o mínimo, enquanto não encontrava trabalho".
Dadas as características da sua especialização, resolveu tentar a sorte como professor de alunos com deficiência. Foi uma agência de recrutamento que o colocou, em Janeiro, numa escola londrina como professor assistente de Educação Física.
Procurar emprego em Londres não foi propriamente fácil, recorda José Finisterra. Uma das principais dificuldades foi "dar com os lugares das entrevistas, nos primeiros tempos". À falta de um GPS, José desenhava num caderno os percursos que tinha de fazer e os transportes que precisava de apanhar. A língua, embora a domine, foi outra barreira, até porque levou o seu tempo a adaptar-se ao "British accent".
Hoje, já não precisa de dar tantas voltas. Tem lugar fixo de trabalho e até parece que a escola o vai contratar a partir do próximo ano lectivo: "Propuseram-me deixar de trabalhar para a agência que me colocou, para ficarem comigo em definitivo", conta José, que assume ter criado "uma óptima relação de amizade com o staff e alunos da escola". Não obstante a distância da família e dos amigos, sente-se bem onde está. "Voltar a acreditar nas minhas capacidades foi essencial para a minha felicidade e realização pessoal."
De acordo com a Associação Nacional dos Professores Contratados, Inglaterra é o destino comum a muitos docentes que se vêem sem colocação em Portugal. Há quem esteja "a satisfazer as necessidades transitórias de docentes, realizando substituições diárias, em locais diferenciados de Londres", disse ao PÚBLICO César Israel Paulo, porta-voz da associação.
César Israel Paulo destaca a mágoa com que muitos destes docentes abandonam o seu país e que, uma vez instalados no estrangeiro, não expressam vontade de regressar. Acrescenta ainda que são muitos os professores portugueses que emigram para Inglaterra por ser mais fácil a obtenção de um visto para a Austrália, "onde as condições de trabalho são bem melhores". Mas não dispõe de números. "São muitos", diz.
"Sozinha nesta caminhada"
Aos 44 anos, Ana Antunes divide o seu coração entre Portugal e a Alemanha. Nascida e criada em Hamburgo, conhece bem o funcionamento das escolas alemãs onde foi aluna e hoje é professora. Licenciou-se em Portugal, em Línguas e Literaturas Modernas na variante de Inglês-Alemão, e, por um período de quatro anos, regressou para Hamburgo, onde deu aulas no ensino secundário. Há cerca de sete anos, o apelo à terra dos pais foi mais forte e decidiu dar uma oportunidade a Portugal. À semelhança de José Finisterra, passou pela experiência das AEC como professora de Inglês no 1.º ciclo e deu também formação a adultos, à noite, "sempre a recibos verdes, muitas vezes com meses de atraso no pagamento".
Não se sentia professora. Começava a trabalhar quando os restantes professores saíam das escolas. Horários reduzidos, inexistência de contratos e a situação "complicada dos recibos verdes" fizeram-na repensar a vida. "Resolvi telefonar para a minha antiga escola na Alemanha e, qual não foi o meu espanto, quando a directora me ofereceu um lugar e até me pediu desculpa por ser como professora primária e não no secundário. Ela lembrava-se de que eu não gostava muito de leccionar aos mais pequenos." Ana apressou-se a explicar-lhe que na realidade tinha passado os últimos anos dedicada ao 1.º ciclo. Hoje agradece às AEC pela experiência, que acabou por se tornar uma mais-valia.
No ano lectivo passado assegurou uma turma de 3.º ano, onde lecciona todas as disciplinas. Não tenciona regressar a Portugal, até porque não quer privar o filho, que entretanto levou consigo para a Alemanha, das "inúmeras oportunidades que este país tem para lhe oferecer".
Na escola onde dá aulas sente um reconhecimento que não chegou a sentir em Portugal. "Não estou sequer a falar nas diferenças financeiras, mas sim na valorização que dão aos professores, no apoio incondicional por parte da direcção escolar, e os próprios alunos, que vivem numa realidade muito diferente da dos alunos portugueses."

Em Hamburgo está em casa, apesar do seu amor incondicional por Portugal. "Embora tenha aqui muitos amigos, estou nesta caminhada sozinha. Não é fácil ter de tomar todas as decisões, sozinha, sem ajuda."
Uma aventura tropical
Mal se apercebeu de que o seu horário completo, mantido durante três anos na mesma escola, iria desaparecer, Dulce Neves fez contas à vida e não esperou pela reserva de recrutamento, que coloca os professores contratados nas escolas públicas, semanalmente, durante o ano lectivo. Perder tempo de serviço, engrossar as fileiras do centro de emprego, esperar por um horário que nunca se sabe quando vai surgir são problemas que quis contornar.
Aos 31 anos, tornou-se agente da Cooperação Portuguesa, através do Instituto Camões, e, há cerca de um ano, assumiu funções como professora de Ciências, Biologia e Geologia, no Instituto Diocesano João Paulo II, em São Tomé e Príncipe. Já antes, acabada de sair da faculdade, Dulce tinha dado aulas na Guiné-Bissau, também num projecto da Cooperação Portuguesa, onde simplesmente "quis viver a experiência" - "Desta vez, quis fugir da precariedade das condições de contratação, já que o meu horário desapareceu devido à revisão curricular."
Dulce é um dos 1465 docentes da complexa rede de Cooperação Portuguesa, que se estende por cerca de 70 países, em todo o mundo. O Instituto Diocesano onde dá aulas é uma das duas escolas santomenses que seguem o currículo português. Além de São Tomé e Príncipe, existem mais Escolas Portuguesas em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste e Macau.
Em São Tomé, Dulce tem alojamento garantido e a possibilidade de renovar o seu contrato, embora nem tudo seja fácil na opção que fez. "Não vou ver o meu sobrinho crescer. O meu namorado ficou em Portugal. A minha casa ficou em Portugal", explica.
Admite não suportar a xenofobia e o machismo que sente em seu redor, na ilha africana. "Aqui, só por seres mulher, muitas vezes nem te ouvem." Apesar de tudo, "as dificuldades são contornáveis".
São também muitos os aspectos positivos que destaca em relação à experiência. E enumera-os numa lista de 13 itens, onde sublinha o respeito que a comunidade educativa tem pelo trabalho dos professores e o facto de ter "turmas pequenas". Além disso, tem a oportunidade de comer frutas tropicais todos os dias e de poder ir à praia durante todo o ano. Delicia-se com as bananeiras e as crianças que brincam ao ar livre. "Gosto de ouvir os santomenses a dizer "chê piquena" e "kê quá!"."
Tão cedo não prevê voltar a Portugal, a não ser de férias.
Ensinar português lá fora
A rede da Cooperação Portuguesa, gerida pelo Instituto Camões, inclui também o Ensino de Português no Estrangeiro (EPE), que conta com 383 professores do ensino básico e secundário e 51 leitores do ensino superior. Estão espalhados por nove países europeus (Alemanha, Reino Unido, Luxemburgo, Países Baixos, Bélgica, Espanha, Andorra, França e Suíça) e quatro africanos (África do Sul, Namíbia, Suazilândia e Zimbabwe). "Na sua maioria, [são] professores com graduação na área do português, mas há também professores na área da história", explica Mário Filipe, vice-presidente do Instituto Camões.
O número de vagas para professores para o EPE tem vindo a diminuir. Os candidatos não, continua.
Adivinham-se mudanças. A partir do próximo ano lectivo, os professores da rede EPE vão passar a ter "uma comissão de serviço de dois anos", diz Mário Filipe, quando até aqui os contratos, ainda que renováveis, eram de apenas um ano.
Irene Lemos, 51 anos, é uma das professoras que têm exercido funções no EPE, há 15 anos. Dá aulas em duas escolas do Luxemburgo, em cursos pós-laborais e em cursos integrados, diurnos. "Esses cursos integrados fazem parte de acordos bilaterais entre os dois países", conta Irene, que assegura as disciplinas de Ciências, História e Geografia, sempre em língua portuguesa.
O marido já dava aulas também no estrangeiro e Irene aproveitou a boleia. Mudou-se com toda a família para o Luxemburgo, inicialmente com a ideia de obter uma boa remuneração, "o que não se verifica actualmente com os sucessivos cortes e aumentos de IRS" que tem de pagar em Portugal.
"Apesar de todas as preocupações e do stress ao longo dos anos devido às mudanças no EPE, é uma experiência muito positiva e a comunidade reconhece, na sua maioria, o nosso trabalho. É sobretudo um grande enriquecimento pessoal."

17.08.2013

Uma academia internacional de teatro que ensina as crianças a amar a vida

http://www.publico.pt/desporto/jornal/uma-academia-internacional-de-teatro-que-ensina-as-criancas-a-amar-a-vida-26971659


De origem francesa, mas sediada há vários verões na Bélgica, a Academia Internacional de Teatro para Crianças tem agora a sua primeira experiência em Portugal. E Angola juntou-se à festa.
Nélson Gonçalves, um angolano de 22 anos vestido de branco, dá indicações em voz alta às 36 crianças francesas, belgas, portuguesas e angolanas que rodopiam no ginásio. Parece um professor de dança, muito direito, muito elegante. Mas é de teatro que se trata. E o teatro, que se faz com o coração e com o corpo, precisa de música, de dança, de desinibição. Os exercícios de Nélson servem precisamente para isso.
Mais do que memorização de textos, uma academia de teatro para crianças como esta precisa de trabalho duro. De suor e algumas lágrimas. Ainda que seja por apenas três semanas, durante o Verão.
Os exercícios são feitos a pares. Nélson ensina as crianças a dançar "com um morto". Deixa-se cair nos braços do seu par, arrastando-se consoante os passos do companheiro. Os 36 pares de olhos fitam a cena. Riem, não acreditam que vão conseguir fazer o mesmo, mas tentam. O ginásio do Seminário Maior de São Paulo, em Almada, enche-se de pares que dançam desengonçadamente. Uns caem, outros riem, perdem a concentração. É um exercício que desenvolve a expressão corporal, mas também a confiança no outro.
Todos os exercícios são transmitidos em português e em francês. "Silêncio! Silence!" As crianças põem fim à tarefa transformada em brincadeira e logo Nélson inicia a explicação para o próximo exercício. Em silêncio, de olhos fechados, as palmas das mãos de cada um dos pares tocam-se e dançam. Num instante, a sala fica suspensa num silêncio comovedor, embora a melodia da música de fundo embale a dança das mãos. Momentos depois, os mais agitados já abrem os olhos, flectem os joelhos. Sorriem.
"Já começam a acusar cansaço depois de duas semanas", segreda-nos Ana Sofia Santos, a formadora portuguesa que se juntou este ano à equipa da Academia Internacional de Teatro para Crianças, pela primeira vez a trabalhar em Portugal. Fundada em Paris em 1986, a equipa encabeçada por Elisabeth Toulet, Christine Saillet e Francisco Marques, um português radicado em França, tem desenvolvido projectos de educação artística e teatral junto das comunidades infantis em países como o Canadá, a Bélgica, a Itália, o Líbano, o Senegal, a Argélia e o Chile.
Há vários anos a funcionar na Bélgica durante o Verão, a academia teve agora condições para juntar em Almada, durante três semanas, 36 crianças e jovens entre os 8 e os 14 anos. Convivem, aprendem e trabalham arduamente. Parte do que fazem durante o dia de trabalho, que começa às 10h00 e termina às 18h30, tem um objectivo definido: ensaiar uma peça que será levada à cena nos próximos dias 23 e 24, no Teatro da Comuna, em Lisboa. Pássaro Azul é o nome.
Os exercícios são para ajudar a crescer, numa atmosfera onde a criatividade e a relação com o outro são como o oxigénio.
A meio da manhã afinam-se as gargantas. As letras das canções estão escritas em cartazes afixados nos espaldares do ginásio. Todos cantam em francês, português e inglês.
As canções são o ponto mais alto das manhãs. Elas farão parte do repertório doPássaro Azul, bem como algumas coreografias que são treinadas nos exercícios de expressão corporal. Os textos só serão entregues daí a uns dias. O mais importante agora é treinar o corpo e a voz.
O canto e o movimento fazem parte deste espectáculo, adaptado de um texto original de Maurice Maeterlink. É quase um musical, mas muito mais do que isso. O encenador, Júlio Martín da Fonseca, explica-nos: "O Pássaro Azulsimboliza a procura da felicidade, não a felicidade simples de alguém que come um gelado num dia de Verão, mas a felicidade que nos dá uma razão de viver."
É este o espírito de toda a academia. Sente-se em cada pormenor da organização e até no espaço de acolhimento, que respira paz do alto da escarpa almadense. Do outro lado, Lisboa estende-se numa paisagem de tirar o fôlego. É a cidade, de uma ponte à outra, que por momentos as crianças contemplam em silêncio ao fim do dia.
Os telemóveis, os computadores, as televisões, os Mp3 não têm espaço durante as três semanas. Os adultos que compõem a equipa asseguram-se da comunicação com os pais. Escrevem-se cartas em vez de se enviarem emails. Brinca-se, joga-se, dança-se, ri-se, lê-se, canta-se, em vez de se passarem horas à frente de um computador.
É a segunda vez que o belga Hugo d"Ursel, de 12 anos, participa na academia. No ano passado, na terra natal, a experiência foi diferente: "Foi giro, mas foi mais clássico. Aqui fazemos muitos ateliers." Cantar é o que mais gosta de fazer o franco-senegalês Francisco Pereira, de nove anos - embora confesse, um pouco envergonhado, que não gosta "de cantar sozinho". Fica admirado, duas semanas depois, por saber que Hugo é belga, uma vez que ambos falam francês.
Sem telemóveis e Internet, a portuguesa Beatriz Ramos, de 14 anos, vacila quando lhe perguntamos se sente falta das tecnologias. "Só me lembro que essas coisas existem quando me falam disso." A francesa Johanna, 12 anos, pela terceira vez a participar, ri-se, admite que lhes sente um pouco a falta.
Ainda não sabem se querem ser actores, mas não é para isso que ali estão. "O teatro ajuda-nos a ganhar confiança em nós mesmos. Podemos dizer as coisas livremente." É a pequena Julia Munoz, de 12 anos, franco-portuguesa, quem o diz.
"É graças ao empenho do senhor Orlando que estamos aqui. Ele já emagreceu muito para nos trazer a Portugal." O monitor angolano Nélson Cabanga, 20 anos, parece tímido mas diz as coisas de forma certeira. "Tenham respeito pela minha barriga", brinca Orlando Domingos, o "pai" da missão de trazer um grupo de cinco crianças angolanas e três monitores a Portugal.
Fazem parte da associação juvenil Globo Dikulu, do município do Cazenga, na periferia de Luanda. "Nós apoiamos as crianças desta região para poderem participar em actividades nos seus tempos livres, para que se desviem das más práticas", explica Orlando. A parceria com a Academia Internacional de Teatro para Crianças surgiu quando Francisco Marques e Christine Saillet visitaram o seu centro de educação artística e organizaram um estágio de formação em que várias crianças foram convidadas a participar. As que se destacaram ganharam lugar na academia, em Portugal.
"Escolhemos 12 crianças, mas só puderam vir cinco. Alguns pais fizeram um esforço suplementar para poderem pagar as passagens dos filhos. Pediram empréstimos e adiantamentos de salário. A organização da academia também fez outro esforço", explica Orlando.
Os cinco seleccionados são, aos olhos de todos, os mais esforçados e os que têm mais "sede de aprender", diz Elisabeth Toulet, fundadora da academia. Cássia Armando, 14 anos, João Domingos, de 15, Wagner Mateus, de 14, Edna Menezes, de 13, e Madalena Gola, de 14 fazem teatro há um, dois, três anos no centro de educação artística no Cazenga. Todos falam do seu amor pelo teatro. "Foi algo que começou do nada e que se tornou quase tudo", diz Cássia. Edna reforça: "Para mim o teatro é como uma mãe ou como um pai. Não há nenhuma arte melhor." Madalena acredita que o teatro "é uma bela arte, porque não ensina só a representar, também educa".
João gosta muito de comédia e até se vê um dia a fazer filmes comos os do Mr. Bean. Já Madalena gosta mais do drama. Edna encolhe os ombros: "Tanto faz, gosto de tudo." Na academia dançam, cantam e encarnam personagens. "Gosto do modo de ensino dos professores. Da união entre as crianças aqui. Não estava à espera de encontrar este ambiente", confessa Wagner.
Na próxima sexta-feira é o grande dia da apresentação ao público na Comuna. Cássia, que usa as asas azuis na peça, está ansiosa. O encenador revela-nos: "O Pássaro Azul é uma viagem que estas crianças vão fazer, uma procura. E o que vamos descobrir é que o Pássaro Azul não é exterior a nós. Ele está dentro de nós."

18.08.2013

Afonso Vaz Pinto Paleontólogo aos oito anos

em http://www.publico.pt/ciencias/jornal/afonso-vaz-pinto-paleontologo-aos-oito-anos-26901797#/0

Tal como um cientista crescido, deu uma palestra, com PowerPoint e nomes científicos incluídos, no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. Título: O mais novo paleontólogo que conhecemos. Tudo começou com uns desenhos animados na televisão e muitos livros de dinossauros oferecidos pelo pai.
É dia de festa no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. A Orquestra Geração afina os instrumentos para o concerto que vai animar os convidados. Na rua, fazem-se experiências químicas junto da recém-inaugurada tabela periódica que preenche uma das paredes daquela que é por excelência a casa da ciência no Parque das Nações. O azoto líquido faz as delícias das crianças, de bocas e olhos abertos, enquanto o monitor da actividade manuseia o componente como se fizesse um truque de ilusionismo. O Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva faz 14 anos, é dia de inaugurar uma exposição interactiva como se estivéssemos numa oficina, de ver a uma peça de teatro sobre a água, mas é sobretudo dia de conhecer Afonso Vaz Pinto, um pequeno paleontólogo.
Chega acompanhado da família. Vieram de Angola há uns dias, como fazem muitas vezes no Verão, quando tiram férias. O pai, Pedro Vaz Pinto, é o biólogo que mais tem defendido a conservação da palanca--negra, símbolo da fauna angolana, em vias de extinção.
Daí a uns minutos, o pequeno paleontólogo fará a primeira palestra da sua vida. Tem apenas oito anos. Nada tem de pomposo quando o avistamos de T-shirt azul, sorridente, pele muito morena. É um menino como todos os outros, gosta de brincar, é bom aluno, mas sente-se como peixe na água quando lhe pedem para falar de fósseis. E não fala por falar, sabe o que diz, emprega os nomes científicos, memoriza palavras compridas que até um adulto não conseguiria pronunciar.
Afonso Vaz Pinto nasceu em Portugal, mas é angolano. Desde os cinco anos que sonha com dinossauros, época em que costumava ver uns desenhos animados na televisão, onde os animais pré-históricos eram as estrelas. "Chamava-se o Comboio dos Dinossauros", recorda, como se tal coisa lhe tivesse sucedido há muitos anos. O interesse transformou-se em fascínio, sobretudo alimentado pelo pai, que lhe comprava livros e mais livros sobre dinossauros.
A caminho do 4.º ano, já sabe que não pode falar muito sobre o seu passatempo aos amigos da escola, até porque "eles não querem saber de dinossauros, estão mais virados para a tecnologia" e ele é um convicto admirador das coisas antigas. Já foi chamado ao quadro pela professora para falar sobre a sua paixão, os fósseis, mas nunca lhe tinha passado pela cabeça fazer uma palestra, como a que fez na última quinta-feira, sobre paleontologia, a que o Pavilhão do Conhecimento deu o título O mais novo paleontólogo que conhecemos.
Traz um PowerPoint com explicações científicas e com as novidades das suas descobertas. Diz que não está nervoso e até parece que faz isto todos os dias.
"Em Angola, só foi descoberto um único dinossauro, o Angolatitan", conta-nos, antes de iniciar esta nova experiência como conferencista. O resto são répteis marinhos e pterossauros, ou seja, répteis voadores. É aqui, na desmistificação de que nem todos os répteis pré-históricos são dinossauros, que o paleontólogo júnior insiste e, na apresentação no PowerPoint, quer chamar a atenção para isso. "Os dinossauros são terrestres, apesar de terem vivido ao mesmo tempo que os répteis marinhos e voadores e de se terem extinguido também ao mesmo tempo."
A história de Afonso Vaz Pinto cruza-se com a do paleontólogo português Octávio Mateus, que tanto escava na Lourinhã, sua terra-natal, como em Angola, onde está por estes dias. Foi o investigador português que descobriu oAngolatitan em 2011, no decorrer do projecto PaleoAngola. Afonso chama-lhe "paleontólogo famoso" e tem-no como amigo e professor. "O Octávio ensinou-me muitos nomes de fósseis." Não se recorda bem de como o conheceu, mas é como se sempre tivesse feito parte da sua vida.
Sempre que ambos estão em Angola, Afonso junta-se à equipa de Octávio Mateus e participa nas escavações. Não consegue passar sem isto, nem consegue tirar os olhos do chão e das paredes das montanhas. Foi assim, quando tinha sete anos, que fez aquele que considera ser o seu primeiro grande achado paleontológico, em Bentiaba, perto do Lubango, onde mora com a família: "Estávamos a andar de carro, olhámos em frente e dissemos: "Isto é um osso?" Ainda pensámos que era uma raiz, mas depois saímos do carro e vimos que tinha dentes!", relata Afonso, abrindo as mãos para mostrar o tamanho da mandíbula de um mosassauro, um réptil marinho, que encontrou há cerca de dois anos.
A sua outra grande descoberta é portuguesa. "Só descobri um único dinossauro, aqui em Portugal, na Lourinhã", conta, com orgulho. Foi convidado por Octávio Mateus para participar numa escavação com outros dois paleontólogos, e, enquanto Afonso Vaz Pinto dava um passeio, com os olhos cravados no chão, encontrou algo que lhe pareceu ser osso. "Um dos paleontólogos disse que aquilo era uma pedra e que eu devia deitar fora. Mas depois o outro sugeriu que fizéssemos um truque para ver se era osso ou pedra. Passas a língua no lábio e depois beijas o fóssil, se colar é osso, se não colar é pedra", descreve com a simplicidade da sua experiência de vida. "Um paleontólogo fez isso... colou e começou a gritar: "É osso, é osso!""
O osso era afinal a base de um espinho de um Miragaia longicollum, pertencente à família dos estegossauros. "Mas era uma espécie diferente porque tinha 17 vértebras no pescoço, enquanto os outros só têm apenas quatro ou cinco. Agora o meu achado vai para ao Museu da Lourinhã."
Desde aí, não tem parado de coleccionar fósseis de répteis marinhos, dentes de tubarão e de outros peixes que encontra nas suas prospecções em Angola. "À porta de minha casa tenho os fósseis mais antigos do mundo. Olhava para o chão e via muitos dentes diferentes. Há um dente de tubarão que tem duas cúspides de lado que se chama Cretolamna biauriculata."
As explicações continuam, Afonso Vaz Pinto não faz qualquer esforço para se recordar de tudo o que nos diz. Fala de estromatólitos, que viveram há cerca de 1100 milhões de anos no território que agora é Angola, como quem fala de um qualquer assunto banal: "Há uma zona muito perto do Lubango, que é Humpata, que tem umas falésias cheias desses fósseis, que são os estromatólitos. Eram bactérias que cresciam de baixo de água, mas à medida que [o nível] da água subia [bastante], as bactérias morriam."
Em casa, no Lubango, a colecção vai-se avolumando. "Os fósseis que tenho agora estão todos guardados em casa, estão limpos e protegidos, todos prontos para ir para o museu", explica Afonso, que acalenta o sonho de construir uma casa para a paleontologia angolana no Lubango.
Foi o pai que lhe transmitiu a ideia de que os seus achados não lhe pertenciam, mas sim à ciência. É um projecto para o futuro, mas ainda em fase embrionária. A mandíbula de mosassauro, descoberta que tanto o orgulha, está guardada numa caixa à espera do dia de ser mostrada ao público angolano.
Para já, o período de férias em Portugal sabe-lhe bem. Além da habitual ida ao Museu da Lourinhã - onde se encontram os ovos de dinossauros carnívoros mais antigos do mundo, com 150 milhões de anos -, que visita sempre que pode, delicia-se com a exposição Quando as galinhas tinham dentes, no Pavilhão do Conhecimento até 8 de Setembro e onde os dinossauros parecem de verdade. Conhece-os todos e o Tyrannosaurus rex não é o seu preferido. "Gosto de todos", diz, encolhendo os ombros. Todos gostam do T-rexou doTriceratops ou dos enormes braquiossauros, por isso não tem piada escolher os mesmos. Mas, pensando melhor, elege o Stygimoloch. "Era um paquicefalossauro, herbívoro e mais ou menos da minha altura. Gosto dele porque tem um capacete oco com espinhos e cornos na cabeça."
Não tem dúvidas quanto à profissão que quer ter. "Se não for paleontólogo, vai ser muito difícil esquecer estas coisas todas." Insistimos: e se não for paleontólogo? Detém-se uns segundos a pensar e, sem encontrar outras opções, abana por fim a cabeça, rejeitando a ideia. "Não, tenho mesmo de ser!"
A hora de discursar aproxima-se. O átrio do pavilhão está cheio de convidados para o ouvirem e Rosalia Vargas, directora da Ciência Viva-Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, apresenta-o. Foi numa expedição que a equipa do Ciência Viva fez há uns meses ao deserto do Namibe, no Sudoeste de Angola, que conheceram Afonso, "no terreno, em plena acção". "Andava à procura de fósseis de tubarões, de répteis marinhos e de peixes com mais de 70 milhões de anos", conta Rosalia Vargas. "É uma inspiração para os mais novos. Diria mais, é uma inspiração mesmo para os adultos."
Ele avança para a tribuna e, esticando o pescoço na direcção do microfone, inicia: "Olá, eu sou o Afonso e vou falar-vos das minhas aventuras paleontológicas em Angola."

1.08.2013